Transgenerismo para Totós

on domingo, 2 de março de 2014
Andei às voltas com este texto durante algum tempo até que cheguei à conclusão que nunca ia conseguir ficar satisfeito com o que escrevi. Tentar definir transgenerismo é uma tarefa bastante ingrata visto que transgenerismo pode ser interpretado de tantas formas que acho que dava para escrever uma tese de mestrado só sobre isto. 

Quanto mais tento aprender sobre o assunto, mais me apercebo que é impossível chegar a um consenso sobre o que é ou não transgenerismo. É daqueles rótulos que tem tantas dimensões que se torna complicadíssimo defini-lo sem fazer asneira - sinto que, por muito que tente, vou sempre falhar e dar uma definição que não reflita a realidade e que potencialmente ofenda alguém (seja por dizer mesmo asneira, seja por omissão, seja por má interpretação, etc). Portanto, quero começar este texto por dizer que o que está aqui escrito provavelmente terá falhas e estará incompleto em vários sentidos. Este texto é suposto ser um texto introdutório e bastante simplificado sobre tranegenerismo - uma espécie de "Transgenerismo para Totós", escrito por um totó. Mas eu vou tentar fazer o meu melhor. 

Pegando na palavra "transgenerismo" podemos ver logo duas componentes: a parte do "trans" e a parte do género. Já ouvi pessoas a dizer que "trans" significa "transgressão" - sendo o transgenerismo uma "transgressão de género". Vamos tentar pegar por aí.

Como já mencionei no meu post anterior, existem papéis de género que são atribuídos a uma pessoa, caso esta seja homem ou mulher. Qualquer "fuga" a esses papéis pode ser vista como uma transgressão das normas sociais onde a pessoa está inserida e costuma ser, consoante a "gravidade" da transgressão, punida pela sociedade. Um exemplo fácil disto é um homem sair à rua a usar um vestido. Qualquer pessoa que o veja na rua vê que ele está, claramente, a quebrar uma convenção social (isto é, normalmente, acompanhado por olhares de desprezo, insultos verbais ou até mesmo agressões físicas). Pode-se então dizer que este homem está a ter um comportamento transgénero - está a transgredir o papel masculino que lhe foi atribuído. 

Isto dito assim parece simples, mas vamos analisar outros exemplos:
- um homem a usar base (maquilhagem);
- uma mulher a usar calças de ganga;
- um homem a usar uma camisa;
- uma mulher a usar uma saia;
- uma mulher a trabalhar na construção civil;
- um homem a ficar em casa a tomar conta dos filhos;
- uma mulher a pintar as unhas;
- um homem a trabalhar num cabeleireiro;
- uma mulher a ler uma revista de automóveis;

Quantas destes exemplos são exemplos de transgenerismo? Qual é o "grau" de transgenerismo de cada exemplo? Se isto se passasse nos anos 20, será que as respostas a estas perguntas seriam as mesmas? Provavelmente não. Uma mulher a usar calças de ganga hoje em dia não é considerado um comportamento transgénero, mas há algumas décadas atrás seria. O mesmo se passa com homens que usam maquilhagem leve, o que é algo que tem vindo a ganhar mais aceitação social e se está a tornar "menos transgénero" com o tempo.

Serve este exercício para mostrar que a noção de transgenerismo pode ser bastante subjetiva e mutável ao longo do tempo (ou até do espaço, se formos explorar outros contextos sociais fora do contexto europeu ocidental).

Existem pessoas que, por terem este tipo de comportamento que, de alguma forma, quebra as normas de género, se consideram pessoas transgéneras - pessoas que transgridem as normas do seu género. Aqui podemos falar não só de comportamentos transgéneros mas também de identidades transgéneras. Essas pessoas podem sentir que as normas de género não "lhes encaixam" e que, portanto, se sentem mais confortáveis assumindo uma expressão e identidade que quebre com essas regras que consideram restritivas à sua expressão individual. Estas pessoas são homens ou mulheres que não encaixam na definição de transexualidade que dei no post anterior - ou seja, homens ou mulheres aos quais foi atribuido o género masculino ou feminino (respetivamente) à nascença mas que rejeitam firmemente os papéis de género que lhes foram atribuídos. 

Quero agora também chamar à atenção para o facto de, da mesma forma que uma pessoa pode ser transgénera mas não transexual, uma pessoa pode ser transexual mas não transgénera. Por exemplo, um homem a quem foi atribuido o género feminino à nascença (ou seja, um homem transexual) e que se sinta bem com os papéis de género masculinos pode considerar-se transexual mas não transgénero, visto que ele não sente que transgride as normas de género masculinas. E, só para não deixar esta ponta solta, é também possível uma pessoa ser simultaneamente transexual e trangénera.

Vamos agora tentar pegar na palavra transgénero por outro ângulo: desta vez, "trans" pode ser diminutivo de "transcende". Transgenerismo neste caso é algo que transcende, que vai além das noções de homem ou mulher. Isto abre portas à noção de existirem identidades de género que não sejam masculino ou feminino. Ou seja, identidades de género não binárias.

O binarismo de género é uma ideia impregnada no nosso tecido social que nos diz que existem apenas dois géneros que são completamente diferentes e mutuamente exclusivos: o género feminino e o género masculino. No entanto, esta ideia tem sido cada vez mais desafiada e contestada por pessoas que sentem que não são homens nem mulheres - são outro género diferente. Este género pode ser uma mistura de homem ou mulher ou algo que não pode ser classificado de acordo com estes dois referenciais. Há até pessoas que sentem que o seu género "flutua" entre o feminino e o masculino (ou por locais completamente fora deste binário). 

Estas pessoas podem ter expressões de género tão variadas como pessoas que "encaixam" no binário - ou seja, uma pessoa pode pertencer a um género não binário mas apresentar-se como uma mulher (por exemplo). Isto acontece muitas vezes uma vez que a nossa sociedade não consegue ainda acomodar devidamente indivíduos que não sejam homens ou mulheres, forçando-os à invisibilidade. Ou então podem ter uma expressão de género "binária" porque se sentem confortáveis dessa forma - o que eu disse sobre "expressão não equivale a identidade" aplica-se aqui também. 

Por vezes, essas pessoas sentem necessidade de modificar o seu corpo para que este reflicta o seu género, podendo recorrer aos mesmos procedimentos (ou semelhantes) usados pelos homens e mulheres transexuais. Também é possível que pessoas não binárias se sintam confortáveis no seu corpo e não sintam qualquer necessidade de o mudar. 

Existem várias tentativas de atribuir nomes aos géneros não binários. O termo "genderqueer" é comummente usado como um termo genérico para géneros não binários (sendo por vezes usado como sinónimo de transgenerismo). Existem também outros rótulos como bigénero (alguém com dois géneros), género-fluido (alguém cujo género não é estático), agénero (alguém que sente não ter qualquer identidade de género), etc etc etc. Um dia hei de fazer uma lista mais ou menos exaustiva dos rótulos usados para definir géneros não binários, mas hoje não é esse dia. 

O que interessa entender aqui é o seguinte: o binarismo de género é um sistema imperfeito que nos ensinam e que não se aplica a todas as pessoas. Algumas pessoas não se sentem homens nem mulheres, mas sim outro género para o qual não existe um rótulo bem definido (ou sentem que não têm nenhum género). Como tal, o rótulo "transgénero" pode aplicar-se a estas pessoas, visto que são pessoas cujo género vai além dos géneros "convencionais" e aceites pela sociedade. 

É mais ou menos isto. Ficou muita coisa por dizer, mas não conseguia encaixar tudo num único post sem que este ficasse demasiado grande e desorganizado. Existe uma série de pormenores e conceitos que eu espero vir a desenvolver mais tarde, mas para já fico-me por esta versão simplificada do assunto. 

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