on quinta-feira, 3 de março de 2016
Sinto que se passou uma eternidade desde a última vez que escrevi por aqui. Foram só (quase) dois meses, mas foram tão intensos e preenchidos com trabalho que tenho andado com a sensação que se passou meio ano desde a última vez que tive tempo para relaxar e escrever um bocado. Foram os últimos 2 meses de trabalho para a minha dissertação de mestrado, para a qual ando a trabalhar a sério desde setembro do ano passado. Tem sido uma experiência interessante, não só obviamente pela parte académica, mas também pelo facto de ser a primeira vez em que estou inserido num contexto em que ninguém sabe que sou trans.

Até ter começado este trabalho podia dizer que toda a gente que me conhecia sabia que eu era trans. Familiares, colegas de curso, amigos de infância, amigos de outros círculos, não era segredo para ninguém. Quando cheguei ao local onde iria desenvolver o trabalho para a dissertação, tinha tudo o que é documento já mudado, era socialmente visto como um rapaz, não via qualquer motivo para anunciar que era trans a nenhum dos meus colegas de trabalho. Portanto, não o fiz. E é estranho. Estou tão habituado ao facto de ser trans ser algo banal que me senti alienado e censurado por mim próprio em várias situações. Na língua inglesa existe o termo "stealth" para designar a condição de se ser trans sem que ninguém saiba, como se estivéssemos a "voar debaixo do radar" de deteção das pessoas. No entanto, tenho vindo a descobrir que poucas pessoas possuem tal "radar".

Ocorreram duas situações em que tive um pequeno deslize e acabei por dizer coisas que, achava eu, me iriam "denunciar", ou pelo menos fazer as pessoas suspeitar. O primeiro foi ter comentado que tinha, em tempos, tido cabelo comprido. Agora dito desta forma não parece grande coisa, há montes de homens com cabelo comprido, mas na altura dei uma importância demasiadamente grande a este lapso. Uns tempos mais tarde estava cheio de pressa para sair, tinha de apanhar o autocarro a tempo de apanhar o centro de saúde aberto para poder tratar da injeção das hormonas. Espera, eu disse isto alto e toda a gente ouviu? Oops.

Foram dois pequenos momentos de pânico, até me aperceber que ninguém fez qualquer tipo de ligação entre o que eu disse e a possibilidade de eu ser trans. Desde aí tenho andado a testar as águas, a tentar descobrir quanta informação é que consigo revelar às pessoas até elas dizerem alguma coisa. O que tenho descoberto é precisamente o oposto daquilo que eu pensava que ia acontecer: por muito que eu conte, ninguém suspeita de nada. 

Por esta altura os meus colegas de trabalho já sabem de tudo o que eu fiz durante a minha transição, só não sabem que foi num contexto de transição. Sabem que no passado as pessoas me confundiam com uma rapariga, em grande parte devido ao cabelo comprido que tinha na altura. Sabem que ando a fazer uma terapia hormonal porque o meu corpo não produz testosterona suficiente. Sabem que já tive mamas e que fiz uma mastectomia para as retirar. Sabem que vou fazer uma revisão à mastectomia nos próximos dias. Mas não sabem que sou trans, nunca juntaram as peças.

O que me está a causar estranheza (de uma forma... positiva, suponho?) é a forma como as pessoas reagem a estes pedaços de informação descontextualizada que lhes vou dando. Eu já tinha (e tenho) no passado falado com pessoas cis sobre as cirurgias e procedimentos clínicos que faço ou planeio fazer, explicitando que são num contexto de transição e de transexualidade. Na maioria dos casos, as reações são de estranheza, como se tudo relacionado com a transição fosse alienígena e extraordinário. Na melhor das hipóteses dizem-me que acham tudo isto muito complicado e difícil e dizem ter uma admiração enorme por as pessoas trans terem a coragem de fazer tudo isto e que nunca se imaginariam a passar pelo mesmo; na pior das hipóteses dizem que é tudo muito estranho, confuso e horrível.

Quando omito a parte da transexualidade, as reações são completamente diferentes. De todas as vezes que revelei algo, alguém dizia que tinha um amigo ou familiar (ou eles próprios) que tinha passado por algo semelhante. Uma tinha uma prima que teve um problema nos ovários quando era jovem e agora também toma hormonas para poder ter os níveis hormonais normais. Depois o amigo do outro teve um acidente que o deixou também assim com umas cicatrizes grandes no peito. E a outra ainda comentou que teve de retirar um tumor de uma das mamas e que o procedimento deve ter sido parecido com o meu; o meu foi só um bocado mais "radical", mas no fundo era tudo o mesmo. Subitamente, as pessoas afinal já têm referências às quais comparar aquilo que eu fiz durante a minha transição. Afinal, já não são coisas assim tão extraordinárias, são coisas que acontecem aos amigos, familiares, a nós próprios. Consigo falar com elas sobre a recuperação post-op, sobre os inconvenientes de tomar uma medicação durante toda a vida, sobre como lidar com cicatrizes visíveis - tudo sem receber expressões vazias acompanhadas de "pois, isso é tudo tão estranho, não faço ideia de como será". Subitamente já não me sinto como um "outro", um outlier.

É impressionante, e triste, a forma como a palavra "transexual" nos torna automatica e acriticamente objetos de estranheza com os quais nenhuma "pessoa normal" se consegue identificar. Na realidade, o que nós fazemos não é assim tão diferente. É mesmo uma pena as pessoas só o verem quando lhes omitimos a parte da transexualidade.

Tudo isto me faz pensar no grau de abertura que realmente quero ou não ter em relação à minha condição como pessoa transexual. Se por um lado gosto de ser aberto em relação a isto, confesso que a sensação de ser visto como um ser humano completamente "normal" (na perspetiva da sociedade, claro) e com quem as pessoas se conseguem identificar é extremamente agradável. Eu sempre tinha pensado que nunca conseguiria construir uma relação de amizade com alguém caso omitisse esta parte de quem sou, mas neste momento já não sei. A palavra "transexual" queima muitas pontes e eu já não sei se isso sempre vale a pena ou não.