on quarta-feira, 7 de setembro de 2016
Dizem que sou um homem. Digo que sou. Dizem que sim. Parece que sim.

Mas porquê?

Em tempos diziam que era uma mulher. Eu dizia que o era. Assim me diziam, e eu dizia que sim.
O que é que mudou?

O tempo mudou, passou. O tempo passava, e a puberdade eventualmente passou por mim. A minha mãe negociava comigo para comprar soutiens, e eu negociava com o meu corpo para que me deixasse esconder as curvas, o período. Tudo negociações fúteis. Eventualmente rendi-me à realidade que se forçava em mim. Diziam-me que devia ficar feliz, que tinha tudo no sítio, que estava a ficar uma mulher a sério. Eu dizia que sim. Não tinha outra escolha senão aceitar que sim. Portanto aceitava, sempre um bocado relutante. Um peito liso, pêlo facial, nada destas curvas, destas formas, desta sensação de ter comichão mas não ter mãos para me coçar. Muitas vezes sentia que estava a ser alvo de uma piada de mau gosto de uma qualquer entidade divina, deixar-me neste corpo, com uma saudade de ter esse outro tipo de corpo que nunca tinha tido como meu. Diziam-me que era um corpo de homem, algo fora do meu alcance. E eu não tinha coragem de dizer que não.

Não invejava os rapazes por serem rapazes. Nunca deixei de fazer nada (exceto quando as condicionantes sociais sexistas se tornavam impeditivas) por ser uma mulher. Muitas vezes encontrava resistência, mas tal só me deixava com mais orgulho daquilo que fazia, de desafiar a norma. Diziam que era uma maria rapaz incorrigível, e eu dizia que sim, com orgulho. Gostava da distância que esse título me dava do conceito de mulher, permitindo-me em simultâneo manter distância do conceito de homem. Continuavam a dizer que era uma mulher, continuavam a tratar-me como tal, mas dava-me algum conforto, nem que fosse apenas em momentos solitários e introspetivos, sentir que conseguia rebeliar-me levemente contra esse conceito que forçavam em cima de mim.

Por outro lado, sentia vergonha nos momentos em que fazia algo que seria interpretado como feminino, como coisa de mulher. Provavelmente por ser mais masculino habitualmente, as pessoas à minha volta gostavam muito de apontar com entusiasmo qualquer quebra dessa minha postura masculina. Não perdiam tempo em dizer que eu era uma mulher, afinal de contas, por muito maria rapaz que fosse. Tais momentos deixavam-me com uma sensação de vergonha, tristeza, angústia até, sem que eu entendesse porquê. A minha reação imediata era esconder-me, tapar o meu corpo, ir para algum sítio onde ninguém me pudesse ver. Nesses momentos as tais comichões intensificavam-se ao ponto de deixarem de ser comichões. Eram queimaduras, apertos no peito, era uma necessidade urgente de me livrar desta pele, destas formas. Hoje em dia chamar-lhe ia apenas disforia.

A certa altura tropecei no conceito de transsexualidade e, por momentos, tudo pareceu fazer sentido. Diziam que era uma mulher, mas na realidade era um homem. Fazia sentido. Fazia? A parte referente à disforia física encaixava bastante bem, mas o sentido parava aí. Muitos dos "pilares" daquilo que me mostravam que era a transsexualidade não se aplicavam a mim. Não me "sentia" homem. Não sabia sequer o que é que isso significava. Não me sentia homem e nunca me tinha sentido menino na infância, época onde, diz quem entende do assunto, a nossa identidade de género se forma e cimenta. Mas eu não me sentia homem, tal como não me sentia mulher. Entretanto fui introduzido aos conceitos de não binarismo de género, pessoas sem género, genderqueer's e afins. Isso já me fazia algum sentido, conseguia rever-me nesses conceitos. Aos poucos, fui descortinando e desconstruindo um monte de bichinhos que tinha na cabeça sobre género, sexo e sobre a transição. Cheguei à conclusão que precisava e beneficiaria imenso de uma transição física no sentido de obter uma anatomia mais próxima do masculino, e tenho andado nessas andanças há cerca de 3 anos. 

Hoje em dia já ninguém diz que sou uma mulher. A minha apresentação já não dá margem para ambiguidades. 



Dizem que sou um homem. Digo que sou. Dizem que sim, Parece que sim.

E eu digo que sim. Podia dizer que não, que era agénero, é o conceito onde sinto que encaixo melhor. Se sentisse que a minha identidade de género fosse uma parte mais relevante do meu ser, provavelmente adotaria esse rótulo. Mas na prática, não me é assim tão importante. Na prática, sou um homem e, como homem, sinto que tenho muito mais poder para modificar esse rótulo, re-definir o que é um homem, moldar esse conceito, desentoxica-lo e torna-lo mais confortável, tanto para mim como para quem mais se encontre cá.

Não sou um homem porque preencho estereótipos de masculinidade - preencho alguns, falho outros.
Não sou um homem porque sinto que sou - não sinto que seja coisa alguma.
Não sou um homem porque tenho o corpo masculino - ainda mantenho características físicas entendidas como exclusivamente femininas, e não tenho planos para as modificar num futuro próximo.

Sou um homem porque me dizem que sou, e sinto-me em paz com isso.