on terça-feira, 30 de dezembro de 2014
Leelah Alcorn, uma rapariga trans de 17 anos dos EUA, suicidou-se hoje (ou ontem? os fusos horários confundem-me). Leelah deixou uma nota de suicídio que pode ser lida na íntegra no seu blog, onde detalha os eventos que a levaram a perder a esperança e a vontade de viver. Para adicionar insulto à injúria, a notícia já apareceu em vários artigos online, quase sempre a reportar a morte de um rapaz de 17 anos que 'parece ter sido' um suicídio ('parece', mesmo com uma nota de suicídio online pode ter sido apenas um acidente, certo...).

É profundamente lamentável o suicídio de mais uma pessoa trans. Ao longo da nota de suicídio podem ler-se menções ao desespero sentido pela Leelah vindo dela própria (o isolamento, o medo de não conseguir fazer uma "transição com sucesso") e, como se isso não bastasse, o desespero foi agravado pelo abuso e intolerância parental, que foi ao ponto de lhe impedir o acesso aos cuidados médicos que ela precisava. Estas situações, infelizmente, são mais comuns do que seria aceitável (se houvesse apenas uma pessoa nesta situação, ainda assim seria inaceitável) e demasiadas pessoas trans continuam a ter de passar por situações destas que, por vezes, culminam no suicídio. Ainda por cima, na maioria dos casos, nunca se chega a saber que a razão do suicídio foi a transfobia porque as identidades e vontades das pessoas trans são rotineiramente ignoradas e/ou apagadas pelos meios de comunicação social ou até pelas famílias das próprias pessoas trans - neste caso, a família de Leelah tem-se recusado a trata-la pelo seu nome e ainda não reconheceram sequer que a sua morte foi um suicídio. 

Há um monte de coisas sobre as quais poderia aqui debruçar-me, mas vou focar-me numa questão que me saltou à vista mas que parece estar a passar ao lado da maioria dos artigos que vejo por aí. 

Quase no final da sua nota de suicídio, Leelah escreveu:
"A única maneira de eu alguma vez descansar em paz é se, algum dia, as pessoas trans não forem tratadas como eu fui, quando forem tratadas como humanos, com sentimentos válidos e direitos humanos. É preciso ensinar sobre o género nas escolas, quanto mais cedo melhor. A minha morte tem de significar algo. A minha morte tem de ser contada no número de pessoas trans que cometeram suicídio este ano. Eu quero que as pessoas olhem para esse número e digam "isto é terrível" e corrijam isto. Corrijam a sociedade.
(tradução livre)

Leelah pareceu encarar o seu suicídio não apenas como uma decisão pessoal, mas como uma oportunidade para fazer ativismo. Isto provoca-me alguns sentimentos dissonantes entre si... por um lado compreendo que uma pessoa queira dar algum significado à sua vida, mas faze-lo através do término dessa vida parece-me horrendo. O suicídio não é a melhor forma para fazer passar uma mensagem num contexto de ativismo (ou em qualquer outro contexto). O mundo só muda se houver pessoas que lutem para que as mudanças ocorram. É preciso resistência, e não há melhor forma de resistência do que mostrar ao mundo que sobrevivemos a toda a merda que nos atiram à cara diariamente. 

Espero não ser mal interpretado. Não quero com isto criticar os motivos ou desejos da Leelah, mas tinha isto um bocado preso na garganta e queria deixar isto registado algures. Mais do que isto ter aparecido na nota de suicídio dela, preocupa-me a atenção que algumas pessoas parecem estar a dar a este excerto do texto. Ao ler alguns comentários sobre este caso quase que fico com a impressão que estão a glorificar este suicídio em nome do ativismo e da mudança. Por favor, não façam isso. Não há absolutamente nada de inspirador no suicídio de uma jovem de 17 anos, vítima de transfobia.

Vamos tentar tornar o mundo num local em que isto nunca mais volte a acontecer.

Caso estejam a lidar com pensamentos ou ideações suicidas, por favor falem com alguém. Um familiar em que possam confiar, um amigo próximo, alguém. 

Centro SOS Voz Amiga - Ajuda na solidão, angústia, desespero e prevenção do suicídio
21 354 45 45
91 280 26 69
96 352 46 60
Diariamente das 16h às 24h horas
www.sosvozamiga.org

Linha SOS Palavra Amiga
Viseu – 23 242 42 82
Todos os dias, das 21 à 01 horas

APAV - Associação Portuguesa de Apoio à Vítima
Apoio emocional
707 200 077 (chamada com preço independentemente da distância)

Telefone da Amizade
Um amigo nas horas difíceis
22 832 35 35
Todos os dias (16h-23h)

Linha LGBT
21 887 39 22
Quarta a domingo (20h-23h)

Linha Urgência Espaço T
Apoio em momentos de crise e situações de angústia
707 201 076 (chamada com preço independentemente da distância)
Dias úteis das 14h às 18h

Linha SOS Bullying
808 962 006 (2ª a 6ª feira, das 11h às 12h30m e das 18h30 às 20h)
bulialuno@anprofessores.pt

Linha SOS Estudante
Apoio emocional e prevenção do suicídio
808 200 204 ou 96 955 45 45
Das 20h à 1h (chamada local)

S.O.S. Adolescente
800 202 484
on domingo, 16 de novembro de 2014
Há dois dias mostraram-me um artigo de 'opinião' publicado na edição online de um jornal nacional que, volta e meia, não é opinião coisíssima nenhuma - é pouco mais do que um vómito de preconceitos do autor. Se alguém quiser ler esse atestado de ignorância, pode lê-lo aqui (não se preocupem que ao clicar nesse link não estão a dar mais tráfego ao site do jornal). Eu pensei em fazer um post ressabiado a criticar cada frase desse artigo, mas vou tentar fazer algo mais útil e atacar a raiz do problema.

O grande problema aqui parece ser o velho problema que sempre existiu entre a população em geral em relação à transexualidade: não nos vêem como homens ou mulheres e portanto consideram a transição como algo que, na melhor das hipóteses é apenas estético, na pior das hipóteses é uma mutilação e que nós devíamos é ser todos internados num hospital psiquiátrico. 

Começando pelas bases: um homem trans é um homem, uma mulher trans é uma mulher, independentemente da sua anatomia, expressão, personalidade, ou qualquer outro fator (o mesmo se aplica para pessoas fora dessas duas opções). Não faz sentido sequer questionar uma coisa destas porque não existe maneira de "medir" a identidade de uma pessoa, não existem critérios objetivos para avaliar a masculinidade ou feminilidade de alguém. As tentativas de "desenrrascar" esses critérios normalmente caem no determinismo biológico - "se nasces com um genótipo ou fenótipo normativamente masculino, és um homem e ponto final" - o que, além de ignorar toda a diversidade natural dentro da nossa espécie, é um critério arbitrário e obosleto. Não havendo critérios, a única opção é confiar na pessoa que declara a sua identidade como masculina/feminina/outra, tendo em conta que mais ninguém conhece melhor aquela pessoa do que ela própria. 

A identidade de género de alguém não é mensurável e, mesmo que fosse, não haveria qualquer interesse em pôr isso em causa porque é algo que apenas diz respeito à própria pessoa

No entanto, uma enorme parte do problema que as pessoas têm com a população trans estende-se não apenas à identidade por si só, mas ao que a pessoa trans decide fazer em relação a isso. Tudo à volta da transição é algo completamente alienígena e estranho à maioria das pessoas, portanto a maioria limita-se a ficar na ignorância e cede aos seus próprios preconceitos para formar uma "opinião" sobre o assunto. 

Por muito que as pessoas achem estranho, um facto é que a transição não é algo apenas estético, não é um capricho nem uma "maluqueira" que passa pela cabeça das pessoas trans. Se a palavra das próprias pessoas trans não for totalmente convincente (raramente o é, infelizmente), existem várias entidades médicas que reconhecem a transição como uma necessidade médica: a American Psychological Association "reconhece a eficácia, vantagens e necessidade médica da transição de género" e acrescenta que apoia a facilitação do acesso destas pessoas a cuidados médicos apropriados (ex: incentivando as seguradoras e o estado a cobrirem estes cuidados), à mudança da identidade legal, à não discriminação e à integração das pessoas trans na sociedade. A American Medical Association tem uma opinião semelhante, dizendo que existem provas suficientes para considerar a transição (incluindo tratamentos hormonais, cirurgias, etc) com algo benéfico e necessário às pessoas trans. O mesmo diz a American Psychiatric Association, a World Professional Association for Transgender Health, entre outros.

Relacionado com este ponto está o mito que diz que a transexualidade é uma doença mental. Tal também não é suportado pela maioria das entidades médicas já mencionadas. O Parlamento Europeu também concorda que a considerar a transexualidade uma doença psiquiátrica é condenável e apela aos países membros para mudarem essa classificação das vivências e identidades trans, para que simplifiquem o acesso à mudança de nome e para que os custos associados à transição sejam cobertos pelas seguradoras ou pelo estado. Está também explicitado no princípio 18 dos Princípios de Yogyakarta que a identidade de género nunca pode ser considerada uma patologia. A discriminação sofrida pelas pessoas trans pode estar relacionada com perturbações de ansiedade, depressão ou outras condições, mas isto é fruto da discriminação, não da identidade da pessoa [1]

A crença de que a transexualidade é uma doença mental muitas vezes leva as pessoas a pensar que é possível "curar" a transexualidade de alguém através de "terapias reparativas" ou persuadindo a pessoa trans a simplesmente "aprender a aceitar a sua identidade" (o seu género atribuído à nascença). Uma coisa que essas pessoas parecem ignorar é o facto de muitas pessoas trans terem tentado fazer precisamente isso: aceitar a sua "identidade", aprender a viver como um homem ou mulher, tentar convencer-se que não precisam de fazer a transição, que isso era uma ideia parva e que só iam estar a alimentar ilusões criadas por elas próprias. Não é algo pelo qual todas as pessoas passam, mas já vi este tipo de narrativa a ser descrito com alguma frequência entre pessoas trans (eu próprio passei por uma fase dessas). Portanto, essa ideia de "tentar aceitar o género que nos foi atribuído" não é nenhuma ideia genial, não é nada de novo nem de revolucionário e costuma ser das primeiras "soluções" que as pessoas tentam arranjar - por causa disto ainda fico admirado quando alguém propõe esta "solução" como se a ideia nunca tivesse surgido antes e nunca tivesse sido testada. 

Normalmente estas "terapias reparativas" são as mesmas que se fazem/faziam para curar a homossexualidade, e têm a mesma taxa de sucesso destas: zero. O máximo que pode acontecer é a pessoa trans reprimir a sua identidade e ficar assim "curada" de querer fazer uma transição, mas na realidade a identidade da pessoa não mudou. Esta "solução" entra diretamente em conflito com o que já foi mencionado acima sobre a transição ser algo eficaz e benéfico para as vidas das pessoas trans. Estas terapias têm sido repetidamente desacreditadas entre a comunidade médica uma vez que não nunca mostraram ser eficazes e, muitas vezes, constituem um atentado à dignidade da pessoa a ser "tratada" [2] [3] [4]. Sendo assim, essas terapias são contra-indicadas para a população trans, da mesma forma que o são para a população LGB (podendo até ser considerado como abuso de menores, caso o "alvo" da terapia seja uma criança). 

Finalmente, um dos "argumentos" que também vejo muito a ser feito por quem se opõe à transição é o dilema do "mas e se te arrependes?". Este é o único argumento para o qual eu ainda tenho alguma paciência porque não é baseado em preconceitos e por vezes é um medo real para as próprias pessoas trans. "E se eu chego a meio disto e quiser voltar para trás?" foi uma questão que me assombrou durante bastante tempo. No entanto, usar relatos de outras pessoas que se arrependeram como exemplo não é correto, uma vez que essas situações não são as mais comuns (embora recebam imensa atencão mediática, porque mais estranho do que alguém que "muda de sexo" é alguém que o faz duas vezes e que ainda dá "credibilidade" aos preconceitos da população). Na realidade, a percentagem de arrependimento é muitíssimo baixa. Por exemplo, num estudo que acompanhou 232 mulheres trans, nenhuma expressou arrependimento (dizendo até que estavam mais felizes). Aqui, entre mais de 400 pessoas, a grande maioria reportou que não se arrepende de nenhum dos passos da transição (sendo que as 3 pessoas que se arrependeram de algum passo, arrependeram-se de fazer uma histerectomia ou eletrólise, mas não se arrependeram dos outros passos). Na Europa ocidental, a taxa de arrependimento após o início do tratamento hormonal ou cirurgias ronda os 1.83%, sendo que os autores do estudo notaram é difícil distinguir entre quem se arrependeu por ter chegado à conclusão que afinal não era trans, e quem se arrependeu devido a pressões sociais, familiares e discriminação em geral. 

Ao longo deste texto tentei ir citando fontes credíveis para justificar o que disse (os sites e artigos são quase todos acessíveis ao público e, os que não são, têm a informação citada disponível no abstract) porque considero importante ter alguma fundamentação quando tento construir um argumento com pés e cabeça. Não podemos confiar nas opiniões de gente ignorante e que não faz qualquer esforço real para se informar mas que, apesar disso, age como se tivesse conhecimento ou opiniões relevantes nesta discussão. 

Eu também ia abordar outros temas relacionados com as várias intervenções médicas ou tratamentos hormonais (visto que também ainda existe uma quantidade enorme de desinformação a circular sobre os mesmos) mas este post está a ficar demasiado grande. Portanto, fica aqui o lembrete para o fazer num post futuro. 

Entretanto, caso queiram opiniões relevantes e factos sustentados e verificáveis, tentem entrar em contacto com pessoas trans ou associações sérias que lidem com o assunto. Além disso, o google é vosso amigo (sempre com uma pitada de bom senso e espírito crítico) e se estiverem à procura de factos palpáveis e estudos científicos sobre o assunto, o Scholar pode ser bastante útil. Deixo também esta lista bastante grande de literatura caso alguém tenha vontade e paciência para ir lendo o que lá se encontra.
on sexta-feira, 31 de outubro de 2014


Vai acontecer o segundo encontro nacional de jovens trans. Está marcado para os dias 7, 8 e 9 de novembro e este ano será em Braga.

O encontro é organizado pela rede ex aequo em parceria com o coletivo Braga Fora do Armário e pretende ser um "fim-de-semana de convívio, ativismo e celebração, com porta aberta para tod@s @s jovens trans, assim como para os seus aliados e simpatizantes". Pode ser uma ótima oportunidade para juntar pessoal trans, conhecer gente nova, fazer contactos e passar um fim de semana diferente e rodeado de pessoas com quem nos conseguimos identificar e partilhar experiências, dúvidas, etc à vontade.

O programa já foi divulgado, podem consulta-lo aqui.

Eu vou lá estar, e espero ver muito pessoal por lá =)



Em resumo:
2º encontro nacional de jovens trans
Quando: 7, 8 e 9 de novembro (sexta a domingo)
Onde: Braga
Como chegar: comboio, rede expressos, renex. Os custos de deslocação são financiados aos participantes, com base no transporte mais económico!
O que é que se vai fazer: consulta o programa aqui
on sábado, 25 de outubro de 2014
Este post é dirigido às pessoas que recentemente descobriram que alguém que lhes é próximo é trans. Pode ser um amigo, familiar, colega, etc. Quando alguém vos conta que é trans, pode não ser claro o que é que isso significa ou como proceder em relação a essa pessoa. Ficam aqui algumas guidelines, mas tenham em conta que o ideal costuma ser perguntar à própria pessoa trans as dúvidas que tiverem em relação à situação.

Antes de tudo:
Devem aceitar e reconhecer a identidade da pessoa, independentemente de qualquer outro fator. Não interessa se a pessoa "parece" um homem ou uma mulher, não interessa se fez alguma modificação física, não interessa se essa pessoa ainda não vive totalmente como uma pessoa do seu género - não interessa. A única coisa que interessa é a identidade que a pessoa declara ter.
A pessoa que se calhar conheciam como a vossa amiga, a vossa colega, a vossa prima, é na realidade o vosso amigo, colega ou primo. Pode ser complicado, ao início, ver essa pessoa como pertencente a um género diferente daquele que sempre associamos a essa pessoa, mas é importante fazer um esforço para mudar a nossa perceção e começar a ver a pessoa pelo o que ela realmente é.

Nome e pronomes:
Tratem a pessoa pelo nome que ela pedir. É esse o nome "a sério" da pessoa, independentemente do que possa estar nos documentos. No início vai ser complicado começarem a usar o novo nome - é normal, possivelmente terão passado anos e anos a tratar essa pessoa por um nome e agora de repente têm de o mudar - mas é importante que façam esse esforço. 

Durante os primeiros tempos podem-se enganar, podem até nem dar conta que se enganaram e só se aperceberem disso quando são chamados à atenção. Quando isso acontecer peçam desculpa, corrijam o erro, e continuem a conversa. Não se ponham com explicações sobre "porque é que se enganaram" - nós não queremos saber. Normalmente as "desculpas" que usam para se enganarem no nome seguem a linha do "eu ainda te vejo como uma mulher" ou "é muito difícil para mim mudar" - a primeira é simplesmente algo que nenhuma pessoa trans quer ouvir e a segunda revela que não se estão realmente a esforçar para fazer uma coisa tão simples como mudar o nome pelo qual tratam a pessoa (o que não é assim tão difícil, é uma questão de hábito).

Provavelmente a pessoa trans vai deixar passar os deslizes iniciais com os nomes, mas isto não significa que não nos importemos com isso nem significa que vos damos luz verde para nos tratarem pelo nome errado repetidamente. 

Em relação aos pronomes, aplicam-se os mesmos princípios. Trocar de "ele" para "ela" (ou vice versa) pode ser complicado no início, mas não é nada do outro mundo. 

Um pormenor importante é usar o nome e pronomes corretos mesmo quando nos referimos à pessoa trans no passado, antes de ela vos ter revelado que é trans. Se a pessoa vos revelou que era trans aos 20 anos, o correto é usar o nome e pronomes que ela pediu mesmo quando se referem a essa pessoa quando tinha 5 anos. 


Falar sobre a pessoa trans (na sua ausência) a outras pessoas:
Nunca (nunca) revelem que a pessoa é trans a outras pessoas que não saibam. Se não têm a certeza se essa outra pessoa sabe ou não, não o mencionem. 

Quando falarem do vosso amigo/colega/familiar trans, refiram-se a ele como se referem a qualquer outra pessoa. Não digam nada que possa apontar para o facto de ele ser trans. Nada de "ele é um homem, mas..." ou "ele é mais ou menos homem" nem nada desse género. 

Usem o nome e pronomes que a pessoa trans vos pediu, mesmo quando se estão a referir a essa pessoa na sua ausência. Se a outra pessoa vos perguntar sobre algum pormenor em relação à pessoa trans (ex: perguntar se sabem o nome de nascimento da pessoa, ou que cirurgias fez), respeitem a privacidade da pessoa trans e não respondam a essas perguntas. Uma maneira de escapar a essa situação é dizer-lhes para dirigirem essas perguntas à pessoa trans em questão; uma maneira melhor é dizer que se recusam a responder porque faze-lo seria uma invasão da privacidade do vosso amigo/colega/familiar trans. 

Pode até calhar vocês não saberem qual é o nome de nascimento ou cirurgias ou outro pormenor qualquer desse género. Mas, se souberem, não usem isso como uma espécie de "trunfo" para mostrar às outras pessoas. Nada de "eu sei o nome de nascimento dele e tu não, ah-ah!", como se os pormenores das nossas vidas pessoais fossem troféus que vocês usam para impressionar outras pessoas.

Pode acontecer, principalmente se o vosso amigo/colega/familiar estiver nas fases iniciais da sua transição (assumindo que está a fazer a transição), ouvirem outras pessoas a falar dele e a referirem-se a ele pelo género errado. Nessas situações tentem corrigir o erro e digam que aquela pessoa é na realidade um homem ou mulher; não digam que é um homem ou mulher trans, apenas que é um homem ou mulher, ponto. 

As únicas exceções a isto são quando a pessoa trans vos diz que, naquela situação em particular (ex: entre familiares, entre um grupo de pessoas especifico), ainda é conhecido como uma mulher ou homem e, portanto, tem de ser tratado como tal. Isto acontece quando a pessoa trans ainda não revelou a toda a gente o seu género e estar a faze-lo por ele pode ser extremamente desagradável ou até perigoso. 


Sobre disforia:
Disforia é algo que afeta ou afetou no passado a maioria das pessoas trans. Em termos muito genéricos, pode ser definida como uma sensação de desconforto (físico, social, emocional, ou de qualquer outro tipo) com o género que foi atribuido à pessoa trans. É um bocado complicado definir disforia porque é algo que varia bastante com cada pessoa. O importante a reter aqui é que a disforia, quando está presente, é um problema real e que afeta a qualidade de vida da pessoa trans. 

Da mesma forma que não se deve gozar com qualquer outro problema sério de uma pessoa, não se deve gozar com a disforia. Também não devem descartar a disforia como se fosse um problema imaginado ou exagerado. A disforia não pode ser ultrapassada "se fizeres um esforço" da mesma forma que uma gripe não é curada "se fizeres um esforço". Não é assim que funciona. 

Reconheçam que a disforia é um problema real e tentem dar apoio ao vosso amigo/colega/familiar trans da melhor forma que conseguirem. 


Recapitulando:
) tratem o vosso amigo/colega/familiar pelo nome e pronomes que ele vos pedir
) não revelem a outras pessoas que o vosso amigo/colega/familiar é trans
) respeitem a privacidade do vosso amigo/colega/familiar
) em caso de dúvida, é sempre melhor perguntar do que fazer asneira
) usem senso comum e tratem-no como qualquer outra pessoa
on terça-feira, 30 de setembro de 2014
Com a azáfama toda do final das férias, inicio de um novo semestre e novos projetos, quase que não me apercebi que já era setembro - quase outubro, até. Passei o dia a tratar de papelada e acabei por passar imenso tempo em filas com os meus próprios pensamentos e agora sinto-me nostálgico.

Setembro de 2013 marca o início da minha transição. E, não, isto não significa que tive a minha primeira consulta, ou comecei algum tratamento físico, ou contei a alguém em setembro de 2013. Não fiz nenhuma dessas coisas (o máximo poderá ter sido começado a falar disto abertamente com algumas pessoas, não tenho a certeza). Eu defino o início da minha transição como o dia em que comecei ativamente a tentar por-me confortável dentro da minha própria pele. Fosse a experimentar com roupas e cortes de cabelo, ou a tentar negociar com o meu reflexo em frente a um espelho - foi o ponto em que comecei a trabalhar no sentido de me sentir bem. 

Passado um ano, posso orgulhar-me de já ter conquistado um monte de problemas (e ter arranjado outros tantos) - se me dissessem, há um ano atrás, que hoje estaria na situação em que estou, nunca me teria acreditado. Nunca pensei conseguir fazer tantos progressos durante um único ano.

Há alguns dias conversava com outro rapaz trans sobre as dificuldades do início da transição, dos medos, de estratégias para contar às pessoas, lidar com familiares e stress generalizado à volta da transição. Ao longo dessa conversa estava a constantemente com uma sensação de dejá vu, eu já tinha tido aquela conversa antes. A certa altura apercebi-me que, de facto, eu já tinha estado naquela conversa, há mais ou menos um ano atrás, com outra pessoa diferente e num papel diferente. Há um ano, eu era a pessoa cheia de medos e dúvidas, em pânico sem saber por onde ou como começar tudo isto; do outro lado estava um rapaz que já tinha iniciado a sua jornada há algum tempo a tentar ajudar-me. Na altura ajudou bastante, só o facto de ter alguém com quem falar, alguém que já passou pelo mesmo e que nos possa dar alguns conselhos, é uma ajuda enormíssima. Eu lembro-me de, na altura, ter uma admiração enorme por esse rapaz, pela atitude que demonstrava perante a transição, pelo facto de já estar assumido para um monte de gente e pelo facto de estar a tentar ajudar quem precisava de ajuda (naquele caso, eu próprio). Um ano depois, ainda tenho admiração por ele, embora já me tenha apercebido que ele não é o super-herói que eu julgava que ele fosse - não por ele ter descido na minha consideração, mas por me aperceber que muitas das coisas que me levavam a admira-lo são coisas que fazem parte da vida de muitas pessoas trans e eu próprio já me vi confrontado com essas situações. As pessoas trans passaram de "pessoas super corajosas e fortes e incríveis" para "pessoas que fazem o que têm de fazer para sobreviver", não deixando de ter imensa coragem e força para ser quem somos, claro. Somos todos super-heróis, à nossa maneira.

Hoje em dia acho piada à forma como algumas pessoas vêem as pessoas trans como "super corajosas e fortes e determinadas" (quando não nos vêem como doentes mentais ou loucos), principalmente quando se dirigem a mim como se eu fosse tudo isso que elas pensam que sou. Eu adorava conseguir ter metade da força e coragem que algumas pessoas pensam que tenho. Quase tudo o que fiz durante o último ano no contexto da transição teve muito mais de desespero e frustração do que força ou coragem. Eu comecei a contar às pessoas porque me frustrava imenso viver numa mentira constante, eu decidi começar o processo clínico porque não aguentava mais ficar da forma que estava, qualquer modificação que fiz (que até agora ainda nem foi grande coisa) foi motivada pela necessidade urgente de mudança. (Não me estou a queixar, de forma alguma, de ser visto como uma pessoa com todos esses atributos positivos, estou só a pensar alto - todo este post está a ser um enorme rambling, portanto...) 

Em termos de mudanças físicas, muito pouco aconteceu durante este ano - afinal, a transição não é só isso, por muito que a maioria das pessoas goste de obcecar com as questões físicas (já perdi a conta da quantidade de vezes que me perguntaram sobre a operação, ou sobre hormonas, ou sobre outro pormenor qualquer desse género). Apesar disso, não consigo deixar de sentir que mudei imenso durante os últimos meses. Se calhar as mudanças não serão evidentes para as pessoas à minha volta, mas são gigantescas no que toca ao meu bem estar e evolução como pessoa no geral. Aliás, eu sinto que só agora é que consigo começar a evoluir e a conhecer-me a mim mesmo, a desenvolver traços de personalidade e partes de mim que desconhecia por completo. Não que não tivesse personalidade ou vida antes, mas hoje parece-me tudo muito mais vivo, interessante, apelativo e, ás vezes, mais fácil. Viver é mais fácil agora que me assumi como trans, por muito contraditório que isso possa parecer. Provavelmente não é mais fácil, provavelmente eu tenho é mais motivação e energia para viver e para enfrentar os problemas por muito impossíveis que pareçam de resolver... Não sei. 
É quase como quando comecei a usar óculos: antes de os usar não era cego, mas só agora com os óculos é que me apercebo de que antes via mal e que a vida é muito menos desfocada e esborratada do que eu pensava. Hoje em dia não consigo conceber viver sem óculos e não entendo como é que não me apercebi que via mal mais cedo. 

Eu não sei mesmo onde é que este post vai ou porque é que o comecei sequer a escrever. Acho que não queria deixar passar este marco pessoal. Além disso, queria quebrar um bocado o hábito deste blog de ter posts mais informativos e começar a escrever um bocado mais sobre a minha experiência e sobre... cenas. Não vou entrar em detalhes da minha vida pessoal, mas dar um toque mais pessoal ao blog não calhava nada mal. Portanto, aqui fica. 
on terça-feira, 9 de setembro de 2014
Update (16.04.2015): este guia está agora disponível para download em formato pdf!

Serve este post para compilar toda a informação que conseguir encontrar sobre binders, onde os obter, como os fazer, ou qualquer pedaço de informação relevante para o tema. Este post está em permanente atualização; podem contribuir e deixar mais sugestões de informação, lojas, dicas, etc nos comentários.

Índice do post:
1) Informação básica
2) Compressão com segurança
3) Dicas de utilização
4) Lojas
     4.1) Lojas europeias
     4.2) Lojas fora da europa
5) Métodos caseiros
6) Programas de troca de binders
     6.1) Acessíveis a residentes de Portugal
     6.2) Não acessíveis a residentes de Portugal
7) Outras informações e links



1) Informação básica
Como "binder" pode entender-se qualquer peça de roupa ou tecido usado para comprimir as mamas, com o objetivo de criar a aparência de se ter um peito masculino (liso). Existem diversos materiais e métodos, não existindo um "gold standard" ideal que funcione com toda a gente. 

Os binders podem ser usados por homens transexuais (que tenham mamas) com o objetivo de aliviar a disforia causada pelas mamas ou para fazer com que mais facilmente sejam vistos como homens pelas outras pessoas. 



2) Compressão com segurança
Os binders, independentemente do método ou do material usado, causam stress no nosso corpo devido à compressão da caixa torácica. Por isso, é aconselhado nunca usar um binder por mais de 8 horas seguidas. 

Ligaduras elásticas ou de compressão nunca devem ser usadas como binders, assim como fita-cola (mais informação sobre os problemas associados às ligaduras aqui). Estes métodos estão facilmente acessíveis à população em geral, mas são uma péssima ideia para comprimir o peito: restringem a respiração, não permitem a expansão do tórax, podem causar problemas respiratórios, compressão das costelas (em casos extremos podendo levar a costelas partidas), nódoas negras, etc.

Mesmo usando um material adequado, nunca se deve usar o tamanho abaixo daquele que é recomendado para a nossa estrutura corporal. Usar o tamanho abaixo pode ser tentador, mas vai acabar por provocar desconforto e provavelmente danos ao nosso corpo.

Outra má ideia é usar dois binders simultaneamente. A compressão extra do segundo binder vai causar desconforto e, mais uma vez, danos ao corpo. 

Os mesmos problemas que estão associados às ligaduras e à fita-cola também se aplicam nos casos de má utilização de um binder. 

Usar binders a longo prazo (durante anos seguidos) pode modificar ou danificar o tecido mamário permanentemente e pode comprometer os resultados de uma futura mastectomia. 

Do site do Dr. Décio Ferreira, cirurgião plástico: 
"Uma compressão no sentido perpendicular à base da mama mantendo o mamilo centrado com a mama é a correta. Pode não parecer tão eficiente e ser mais complicado de fazer mas é de facto muito vantajosa no futuro.
(...)
Quando a compressão não é bem feita o problema é maior para o transexual que para o cirurgião.
De facto na tentativa de esconder as mamas por vezes fazem uma compressão de cima para baixo e com isso vão provocar um estiramento da pele que está do mamilo para cima criando mamas em forma de saco de café. Na verdade a glândula é pequena mas nestes casos foi criado um excesso de pele que obriga à criação de cicatrizes. Para tirar a pele que está a mais e que resultou da compressão mal feita o cirurgião não tem hipóteses; tem de criar cicatrizes."



3) Dicas de Utilização
Alguns binders compridos (que cobrem o tronco todo) podem ter tendência a enrolar para cima. Uma possível solução é enfiar o binder dentro das calças ou da roupa interior.

Os binders devem ser lavados à mão e deixados a secar ao ar. É também aconselhado usar água fria durante a lavagem. Isto não é essencial para a utilização do binder, mas pode aumentar o seu tempo de vida.

Os binders feitos com materiais pouco elásticos, apesar de poderem ser mais eficazes no início, costumam ter menos tempo de vida do que os feitos com materiais mais flexíveis. 

Caso o material do binder provoque desconforto ou irritação na pele, pode-se usar uma t-shirt por baixo do binder sem que este perca eficácia.

Os binders que permitem ajustamento (ex: binders com velcro de lado) costumam ser mais fáceis de retirar, mas mais difíceis de colocar. O método adequado para os colocar costuma ser ajustar o binder antes de o vestir.

Caso não consigam vestir o binder como uma camisola normal (por cima, ou seja, enfiar o pescoço e os braços e depois deslocar o binder para baixo para tapar o peito e o tronco), tentem vesti-lo por baixo: virem o binder do avesso e de pernas para o ar, "entrem" com os pés nele e depois puxem-no para cima até ao início do tronco; daí, puxem as alças para cima e enfiem os braços no local adequado (explicação visual neste vídeo).

Para avaliar a eficácia do binder, o ideal é olharem para a vossa imagem num espelho. Se tentarem avaliar olhando para vocês mesmos (olhar para baixo, para o vosso próprio peito) vai sempre parecer que o peito é maior do que é na realidade. 

Ao comprar um binder, caso se encontrem entre dois tamanhos, o mais seguro é comprar o tamanho acima (ex: se estiver entre um S e um M, o melhor é comprar o M). Com o tamanho abaixo correm o risco de ficar com um binder demasiado apertado, desconfortável ou até impossível de vestir. 

Os homens cissexuais também não têm (ou raramente têm) um peito perfeitamente liso. É normal ter um bocado de volume no peito. 



4) Lojas

4.1) Lojas europeias

Danae
http://www.danae.info/en/female-male/tops
Holanda
Preços: 37-59 euros
Inclui modelos ajustáveis com velcro ou fecho zipper, e um binder de natação. Tem outros produtos de interesse aos homens e mulheres transexuais. 



4.2) Lojas fora da Europa
(vendem para Portugal)

Underworks
http://www.f2mbinders.com/
Estados Unidos da América
Preços: 23-30 euros
Bastante popular entre homens transexuais por ser uma das lojas com a melhor relação preço/qualidade e por serem eficazes para a maioria dos tamanhos e estruturas corporais. Têm um bom atendimento ao cliente e são trans-friendly. Têm modelos variados, incluindo um binder de natação.
Por vezes aceitam os códigos "under10" ou "aj4uw10" para obter um desconto de 10%.

GC2B
http://www.gc2b.co/
Estados Unidos da América
Preços: 30-32 euros

T-Kingdom
http://www.t-kingdom.com/
Taiwan
Preços: 23-52 euros
Bastante popular entre homens transexuais, principalmente entre os que têm mamas mais pequenas. Têm modelos ajustáveis com velcro ou fecho zipper.

Love Boat
http://www.lesloveboat.com/shop/index.php?language=en
Taiwan
Preços: 17-78 euros
Vendem outros produtos de interesse à população transexual e LGBT em geral. Têm uma grande variedade de modelos (ajustáveis, sem alças, etc) e várias marcas diferentes, incluindo um binder de natação. Têm uma secção "Plus size" com binders mais direcionados a pessoas com mamas maiores.

Mansculpture
http://www.mansculpture.com/
Estados Unidos da América
Preços: 30-52 euros

Esha
http://www.esha-taipei.net/en/gallery-4.html
Taiwan
Preços: 20-41

Além destas lojas especializadas, também se encontram binders na Amazon, no Ebay, ou em outros sites. 
Um modelo bastante popular pelo seu preço é este, que costuma ter avaliações positivas. 
Outro modelo comum no ebay e também bastante popular pelo seu preço é este. Eu já usei esse modelo durante alguns meses, e não o recomendo: não tem qualquer elasticidade, restringe a respiração e é muito desconfortável; entre usar esse modelo e usar ligaduras, quase não notei qualquer diferença. 



5) Métodos caseiros

Soutiens de desporto
O método, provavelmente, mais facilmente acessível. Consiste em usar um ou dois soutiens de desporto simultaneamente, por vezes usando um deles com o tamanho abaixo do recomendado.

Faixas de material elástico ou borracha
Também facilmente acessível, estas faixas podem ser encontradas em lojas de desporto, farmácias ou em lojas menos especializadas (lojas dos 300, chineses, etc). 

Binder caseiro #1
Explicação do método neste link

Binder caseiro #2 - usando um body-shaper (alguém sabe o nome disto em PT?)
Explicação do método neste link

Binder caseiro #3 - semelhante ao método caseiro #1
Explicação do método neste link

Binder caseiro #4 - semelhante ao método caseiro #1 e #3
Explicação do método neste link

Binder caseiro #5 - usando meias calças
Explicação do método neste link



6) Programas de troca de binders

6.1) Programas acessíveis a residentes de Portugal:

MORF Binder Exchange
http://morfuk.webeden.co.uk/binder-scheme/4585449674
Sediado no Reino Unido, enviam binders para todo o mundo. É preciso pagar os custos de envio apenas. 

Free/cheap ftm binders @ Facebook
https://www.facebook.com/groups/freeftmbinders/
Grupo no facebook para troca, oferta e venda de binders. 

FTM Garage Sale
http://ftmgaragesale.livejournal.com/
Comunidade no LiveJournal de venda, oferta e troca de binders e outros objetos de interesse à população FTM.


6.2) Programas não acessíveis a residentes de Portugal:

In a Bind
https://www.transactiveonline.org/inabind/
Só disponível para residentes dos EUA. Limitado a menores de 21 anos.

Replace The Ace
http://replacetheace.wordpress.com/binders/
Só disponível para residentes dos EUA. 

Pay It Forward
http://binderprogram.ftmaustralia.org/
Só disponível para residentes da Austrália e Nova Zelândia.



7) Outras Informações e links

The Chest Binder Review Blog
http://chestbinders.wordpress.com/
Este blog está inativo desde 2010, mas tem opiniões e avaliações sobre vários binders que ainda são relevantes hoje em dia. Pode ser útil para decidir qual binder comprar.

Este post vai sendo atualizado à medida que vou encontrando mais informação.
As informações aqui contidas vêm da minha própria experiência pessoal, das experiências de outras pessoas que usam ou usaram binders ou de profissionais de saúde (referenciados sempre que possível).

on quinta-feira, 14 de agosto de 2014
Hoje encontrei este vídeo, que aborda um bocado a questão da representação trans nos meios de comunicação social. Como achei que está bom e que passa uma boa mensagem, partilho-o aqui convosco. Tentei também fazer uma tradução livre, para quem não se der bem com o inglês.



"Uma ex-promotora de boxe que representou grandes nomes do boxe como Lennox Lewis, fez a transição de homem para mulher. O seu nome é Kellie Maloney e está, por todas as contas, muito feliz por finalmente ser ela própria, depois de décadas a sentir-se profundamente infeliz com o género masculino que lhe foi atribuído. 

Esperançosamente, essa introdução foi clara e fácil de acompanhar. Também espero que tenha sido correta. Eu não a tratei pelo género errado, nem usei terminologia desatualizada e desajeitada tal como "mudança de sexo". Os meios de comunicação social geralmente tratam as pessoas pelo género errado e recorrem a estes termos porque o transgenerismo é um tópico sensível e pouco familiar. Falar sobre isso pode parecer um campo minado, mas clareza e precisão não são mutualmente exclusivos.

Ao "jogar pelo seguro" no que toca a histórias sobre transgenerismo, estamos a conter o progresso e a fazer um desserviço a toda a gente. As pessoas trans são mal representadas e às pessoas que não são trans é-lhes roubada a oportunidade de compreender a profundidade da variância de género.

Eu sou trans portanto, em termos gerais, sei como falar sobre pessoas trans. Mas, ao contrário do meu género, a língua não foi algo com que eu tenha nascido - eu também tive de aprender, eu faço erros. Esses erros não fazem de mim uma má pessoa. Se não fores trans, é ainda mais difícil. Talvez até nunca tenhas considerado antes que o "sexo" é biológico, enquanto o "género" é psicológico porque, para ti, parecem ser a mesma coisa. 

Por isso, muitas pessoas que não são trans vão ver a história da Kellie como algo fascinante, estranho, talvez até um bocado difícil de aceitar. Parece que é deste ponto de vista um bocado confuso e defensivo que os media falam do transgenerismo. É uma pena enorme, porque na realidade não é assim tão difícil.

Kellie Maloney é uma mulher, portanto vamos parar com o "ping-pong" de pronomes: muitos artigos começam a usar "ele" e depois mudam para "ela". Mas a maioria das pessoas trans vêm-se a elas mesmas como sempre tendo pertencido ao género que apresentam após a trasnição. Podemos falar da vida pré-transição sem usar pronomes incorretos. Em vez de falar sobre "tornar-se uma mulher", digam que ela se assumiu como transgénero. Ela não está a viver "como uma mulher" - isto implica algum tipo de role-play. E, por fim, não existe tal coisa como uma "mudança de sexo" - chama-se "transição". Chamar à transição uma "mudança de sexo" é como chamar à puberdade uma "mudança de corpo"; soa um bocado pateta e redutor, não soa?

A nossa suposição de que a Kellie era um homem é totalmente compreensível. Não precisamos de nos sentir mal ou pedir desculpa, só temos de tornar mais fácil para que outras pessoas como ela consigam assumir a sua identidade mais cedo. 

Aqui está um próximo passo: quando ouvires algo sobre uma pessoa trans, pensa nela como uma pessoa a assumir a sua identidade, não como uma pessoa a tornar-se uma pessoa diferente ou a mudar de género. A Kellie é a mesma pessoa, é agora mais genuína a ela mesma do que alguma vez foi. Quando usamos hormonas na nossa transição, é como passar por uma segunda puberdade, o que é verdade porque estamos, de facto, a tornarmo-nos quem realmente somos. Algumas pessoas, eu incuído, sentem que finalmente cresceram. O que me trás à melhor parte de tudo isto: quando conseguimos ser nós mesmos tornamo-nos, geralmente, mais felizes, mais confiantes. 

As regras comuns de cortesia e privacidade aplicam-se na mesma, mas falar sobre assuntos trans é algo que geralmente fazemos, se ajudar as pessoas a compreender melhor aquilo pelo o que passamos. Basta usar senso comum e julgar a conversa de acordo com o grau de confiança que temos com a pessoa com quem estamos a falar. É um estranho? Provavelmente não devem começar a conversa com questões íntimas sobre a sua história pessoal; aliás, não lhe perguntem nada pessoal, é um estranho. É um amigo vosso? Foi ele que iniciou a converesa? Então é, provavelmente, aceitável fazer perguntas mais diretas; apenas não "entrem a matar" como se nunca tivessem socializado com outros seres humanos antes. Nunca partilhem detalhes pessoais do vosso amigo com outras pessoas, nem falem sobre ele nas suas costas. É apenas uma questão de ser uma pessoa correta. É sempre boa ideia perguntar que pronomes é que a pessoa prefere, e é sempre aceitável cometer erros. É constrangedor, mas é a vida. As intenções é que importam. 

A pior coisa que podemos fazer nos meios de comunicação social, é reforçar o status quo negativo no que toca a assuntos trans. Não é apenas umm questão de respeito. Quando chegarmos ao ponto de fazer justiça a uma história como a da Kellie, poderemos focar-nos mais no que realmente interessa. Podemos falar na violência e discriminação desproporcional que as pessoas trans enfrentam. Podemos trabalhar no sentido de melhorar a enorme taxa de suicídio, pobreza e falta de abrigo dentro da comunidade. E podemos assegurar que, quando falamos sobre igualdade social e legal para pessoas LGBT, realmente englobamos o L, o G, o B e o T. "

fonte do vídeo: The Guardian


Notas:

) eu tenho zero experiência a traduzir textos ou vídeos, portanto de certeza que há por aí alguns erros. Se alguém tiver alguma sugestão para melhorar a tradução, sintam-se à vontade para deixar um comentário;
) eu traduzi sempre a palavra "transgender" para "transgénero" apesar de sentir que, em alguns casos, "transexual" encaixaria melhor na mensagem. A língua inglesa tem esta mania chata de usar quase exclusivamente a palavra "transgender", tanto para se referir ao transgenerismo como à transexualidade.
on quinta-feira, 24 de julho de 2014
Há alguns dias atrás mostraram-me um vídeo chamado "Break Free", que retrata a transição de uma pessoa de uma aparência feminina para masculina. O video está engraçado, mas lá para o meio mostra uma cena durante a qual a personagem começa a enfaixar o peito com ligaduras, com o objetivo de criar uma ilusão de ter um peito liso, masculino.



Esta é uma imagem que eu vejo demasiadas vezes para retratar homens transexuais. Quase todas as aparências de trans masculinidade trazem consigo uma cena onde a pessoa pega em ligaduras e se mete a enfaixar o peito, como se tal fosse o único método para criar um peito liso.



Este tipo de imagem é frequente porque, infelizmente, este ritual das ligaduras ainda faz parte da vida de um homem transexual. Se eu fosse contar a minha história em pormenor, as ligaduras também apareciam por lá. É bastante negativo que assim seja, porque usar ligaduras com este propósito é muito pouco saudável e pode causar problemas a curto, médio e/ou longo prazo.

Eu costumava usar ligaduras, e posso confirmar que é péssimo. Alguns dos problemas que encontrava incluíam:
- Dificuldade em respirar: as ligaduras não têm muita elasticidade, o que significa que não acompanham os movimentos de expansão da caixa torácica durante a respiração;
- Dificuldade em apertar corretamente as ligaduras: apesar de as ter usado durante algum tempo, nunca consegui atinar com o método certo para as apertar. Se apertava pouco elas caíam, se apertava demasiado passava o dia com imensa dificuldade em respirar e num desconforto enorme; pior ainda quando o tinha de fazer às escondidas, a meio do dia, num WC público;
- por falar em ligaduras a cair, era bastante comum as ligaduras saírem do sítio e desfazerem-se durante o dia (principalmente em dias mais movimentados, quando tinha de correr para apanhar um autocarro ou quando tinha de fazer algum tipo de atividade mais física);
- não são assim tão baratas a longo prazo: as ligaduras que eu usava custavam cerca de €2.5, o que parece pouco, mas quando tinha de comprar umas novas a cada duas semanas, acabava por me ficar caro caso as usasse durante um ano (2.5*2*12 = 60 euros/ano);
- paranóia constante: quando usava ligaduras estava constantemente a verificar se ainda estavam no sítio, se nenhum dos ganchos de tinha soltado ou se não se notavam debaixo da camisola;
- irritação da pele: principalmente de lado, abaixo das axilas, à mistura com suor, o material das ligaduras não era muito amigável para a pele.

Além disto, as ligaduras podem causar hematomas ou, em casos extremos, costelas partidas. Portanto, a lição a tirar daqui é: não usar ligaduras para enfaixar o peito.

Felizmente, existem alternativas. Existem vários métodos que também são eficazes para criar a ilusão de um peito liso. Não existe um único método que funcione bem com toda a gente; dependendo do tamanho do peito e da estrutura corporal de uma pessoa, certos métodos podem resultar melhor do que outros. 

Eu já experimentei vários métodos diferentes e acabei por me render aos chamados "binders" (não consigo encontrar uma tradução da palavra binder para o português). Binders são uma espécie de camisola de compressão, inicialmente foram concebidos para esconder as mamas de homens cissexuais que sofrem de ginecomastia (uma condição que leva ao crescimento de mamas em homens cis), mas rapidamente a população trans começou a usa-los para o mesmo fim. Normalmente, só se encontram binders à venda em lojas especializadas. Algumas marcas bastante populares entre homens trans são a Underworks (EUA), a T-Kingdom (Taiwan) e a Mansculpture (EUA). A única loja que eu conheço baseada na Europa é a Danae (Holanda), mas não conheço bem os binders dessa marca. 
Os binders costumam ser o método por excelência para criar um peito liso. Existem várias marcas, vários modelos e vários tamanhos para escolha; o único senão costuma ser o preço. 

Parecidos com os binders são as camisolas de compressão usadas por atletas de várias modalidades. Estas podem encontrar-se em mais locais e a preços mais acessíveis, mas normalmente não têm tanta capacidade de compressão como um binder. 

Além destes produtos, existem alguns métodos mais "caseiros".
Um soutien de desporto pode ajudar um bocado, havendo até quem use dois ao mesmo tempo para dar alguma compressão extra. No entanto, um soutien, mesmo de desporto, não é concebido para alisar por completo o peito. 

Também já vi pessoas a descrever métodos que usam faixas de neopreno, calções de compressão modificados ou outros métodos caseiros. E, se tudo o resto falhar, há sempre a estratégia de usar várias camadas de roupa ou roupa larga para disfarçar um bocado (óbvio que isto resulta melhor no Inverno do que no Verão).

Independentemente do método usado, é importante manter algumas coisas em mente. Por vezes, usar um destes métodos acaba por ser um jogo de forças entre o desconforto físico de comprimir o peito versus o desconforto psicológico (e também físico) de ter de lidar com a disforia. No entanto, caso isto provoque dor durante um longo período de tempo, considerem mudar o método ou mudar a forma como lidam com a compressão. Uma dor aguda costuma ser uma deixa para retirarem de imediato o que quer que seja que estejam a usar para comprimir o peito. Nós queremos aliviar a disforia, mas não compensa o esforço se acabarmos por partir uma costela ou por arranjar algum problema respiratório à custa disso.

É preciso também ter em atenção a quantidade de tempo seguido durante o qual temos o peito comprimido. Normalmente, aconselha-se a não usar qualquer um destes métodos por mais de 8 horas seguidas. Mesmo que estejamos confortáveis, o nosso corpo precisa de pausas para recuperar da compressão. Além disto, é importante saber que, a longo prazo (se usarmos estes métodos durante anos) pode ocorrer uma diminuição da elasticidade da pele nas zonas comprimidas, o que pode comprometer os resultados de uma eventual mastectomia. 

Para quem sua muito ou tem a pele particularmente sensível, pode ser uma boa ideia usar algum produto que diminua a fricção ou uma t-shirt por baixo do binder/camisola de compressão/soutiens múltiplos/etc. Nunca (nunca!) usem fita cola, mesmo que a vossa pele não seja sensível; a fita cola pode causar danos na pele, para além do desconforto enorme que causa (eu nunca hei de perceber como é que há gente que usa este método, mesmo que seja apenas durante performances de drag). 

O ponto fulcral costuma ser usar o bom senso. Se dói demasiado, parem e mudem o método. Se está demasiado desconfortável, ajustem ou façam uma pausa. Não testem os limites do vosso corpo. Nós estamos a tentar ficar confortáveis dentro da nossa própria pele, portanto seria altamente contra produtivo estar a induzir lesões que poderiam ser evitadas com relativa facilidade. 

Eu estou a planear fazer um post mais aprofundado sobre métodos para alisar o peito. Caso tenham alguma experiência, dica ou método que queiram partilhar, deixem um comentário aqui. 

on quarta-feira, 16 de julho de 2014
Wake me up when September July ends... ou a meio de Julho, já serve. A faculdade não me tem deixado escrever nada, entre exames, trabalhos e relatórios, o tempo era pouco e a paciência ainda menor. Mas entretanto continuei a acumular tópicos que gostava de abordar aqui e, agora que já me livrei da faculdade (até Setembro, vá), já consigo voltar a escrever alguma coisa de jeito. 

Deixem-me falar um bocado sobre "disforia". Muitas vezes oiço falar das pessoas transexuais como "pessoas que sofrem de disforia de género"; "disforia de género" é também o nome que dão às pessoas transexuais na versão mais recente do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM - um manual de diagnóstico elaborado pela American Psychiatric Association (APA)), vindo substituir o que antes chamavam de "Gender Identity Disorder" (Perturbação de Identidade de Género). 

Em termos básicos, disforia de género é um desconforto e/ou descontentamento com o género que nos foi atribuído à nascença. É aquilo a que normalmente se refere quando dizemos que as pessoas transexuais "sentem-se mal" com o seu corpo ou com o seu papel na sociedade. Esse "mal estar" é a base da disforia. O conceito é bastante simples, mas mesmo assim ainda vejo por aí muita desinformação a ser espalhada em relação a este tópico.

A ideia (errada) mais comum que costumo encontrar é a ideia de que disforia de género significa que uma pessoa odeia o seu corpo. Enquanto que é verdade que a disforia pode levar a sentimentos de ódio em relação à nossa própria pessoa, esses sentimentos não são o que define disforia, nem estão sempre presentes nas pessoas disfóricas. A disforia pode manifestar-se de diversas formas: pode ser um desconforto físico ou psicológico, pode ser uma sensação de desconexão com o nosso corpo (sentir que o nosso corpo não nos pertence, não nos identificarmos com a nossa imagem num espelho, uma sensação um bocado abstrata de "o meu corpo não devia ser bem assim"), pode manifestar-se como uma depressão, ansiedade, angústia, tristeza ou descontentamento geral com as características sexuais primárias e/ou secundárias do nosso corpo. Tudo isto pode levar, eventualmente, a sentimentos auto depreciativos, ao tal "ódio" ao nosso próprio corpo; mas nem sempre tal acontece, e acho errado estar a espalhar esta ideia uma vez que muita gente não se identifica com ela.

Eu já cheguei a ouvir pessoas a descrever imensos sintomas de disforia, mas a chegar ao fim e dizer "mas eu não tenho disforia, não odeio o meu corpo" - eu próprio andei anos a pensar desta forma, o que foi péssimo pois foi algo que me permitiu continuar em negação em relação à minha própria identidade como pessoa transexual. "Como não tenho um ódio de morte do meu corpo, então não devo ser mesmo trans", era disto que eu me tentava convencer, durante anos, até chegar à conclusão que realmente não precisava de ter um ódio extremo ao meu corpo para encaixar dentro dos sintomas de disforia de género e para beneficiar de uma transição.

A disforia acaba por ser o que motiva as pessoas transexuais a iniciar a transição - aliás, a transição pode até ser definida como um conjunto de modificações que uma pessoa faz para aliviar a disforia de género. É importante referir que, porque nem toda a gente experiencia a disforia da mesma forma nem com o mesmo grau, então logicamente se conclui que nem toda a gente segue a mesma linha durante a sua transição. 

De vez em quando deparo-me com pessoas que rejeitam por completo a noção de "disforia de género" porque sentem que é um termo usado para patologizar as pessoas transexuais. "Disfórica é a sociedade", "disfóricos são os médicos", são coisas que já vi por aí e que pretendem transmitir a ideia de que a sociedade é que está errada em relação à noção de transexualidade, às pessoas transexuais e às questões de identidade de género no geral. Pessoalmente, estes statements incomodam-me um bocado, apesar de entender de onde surgem. É um facto que a sociedade atual não vê com bons olhos as pessoas transexuais (nem qualquer pessoa que fuja um bocado das normas de género) e que é preciso ainda imenso trabalho para que sejamos totalmente aceites e vistos como seres humanos completos e merecedores de dignidade. É também verdade que ainda existem inúmeros profissionais de saúde que teimam em rotular-nos de doentes mentais. Mas pegar nisso e invalidar todo o conceito de "disforia de género", como se fosse algo que existisse apenas devido a fatores externos à pessoa transexual, parece-me um abuso.

Dizer que "disfórica é a sociedade" incomoda-me porque parece estar a implicar que a minha experiência, a minha relação com o meu género, o meu corpo e a minha identidade, tudo isso é inválido porque, pelos vistos, eu não tenho disforia, a sociedade é que tem. Como se, se eu vivesse num contexto social diferente (por exemplo, numa sociedade hipotética onde o conceito de género não existisse), deixasse subitamente de ter disforia. Como se, se eu conseguisse abstrair-me dos conceitos de género que a sociedade me impõe, deixaria de ter disforia e não teria de me dar ao trabalho de fazer a transição. Tudo isto começa a soar perigosamente próximo dos argumentos transfóbicos que dizem que as pessoas transexuais deveriam apenas aprender a aceitar o seu corpo e que, portanto, a transição é inútil. E isto não sou eu a pensar demais numa expressão supostamente inócua, já não é a primeira vez que vejo este tipo de ideia associado a outras ideias como "um homem pode ter uma vagina e mamas" (eu não discordo desta ideia, atenção) e até já vi pessoas a pegar nisto e a fazer umas acrobacias argumentativas estranhas e chegar à conclusão que a disforia é, no fundo, uma forma de cissexismo e transfobia internalizada. Porque, ao querer aproximar o meu corpo de um corpo "normativamente masculino", estou na realidade a reforçar a ideia sexista de que "um homem tem de ser assim e uma mulher tem de ser assado" (eu gostava mesmo de estar a inventar isto, mas não estou). 

Eu sou todo a favor de desconstruir o binarismo de género que a sociedade força em cima de nós, mas gostava que o fizessem de uma forma que não invalidasse as experiências das pessoas transexuais. Eu tenho a certeza que, mesmo se/quando a noção de género for desconstruída, as pessoas transexuais e com disforia vão continuar a existir; talvez lhe dêem um nome diferente, talvez não lhe atribuam qualquer conotação de género, mas o fenómeno que hoje, nesta sociedade, chamamos de "disforia de género" irá continuar a existir. Eu digo isto tendo como base apenas a minha experiência pessoal (que vale apenas o que vale...); eu muito antes de saber o que era uma pessoa transexual, muito antes de "disforia" ter entrado no meu vocabulário, eu já me sentia disfórico. E, hoje em dia, mesmo após ter passado anos a tentar negar a minha própria disforia, mesmo depois de andar a tentar convencer-me que não era real, que conseguia convencer-me a mim próprio que conseguia viver como "um homem com vagina e mamas" e ser feliz assim... mesmo depois de tudo isto, um facto é que "disforia" continua a descrever bem o que eu sinto em relação ao meu género. 

Eu gostava de ver a palavra "disforia" a ser melhor aceite, estar a estigmatiza-la (ainda mais do que ela já é) e a tentar apaga-la não ajuda nada, na minha opinião. 
on sábado, 10 de maio de 2014
Eu nunca fui pessoa de ligar muito ao Festival Eurovisão da Canção. Música pop (e uso uma definição muito abrangente de "pop"), nacionalismo e concursos de popularidade entre países nunca me foram muito apelativos. Já ouvi várias teorias sobre o festival estar bastante ligado à população LGBT, embora nunca tenha entendido bem porquê - sempre pensei que fosse por existir aquele estereótipo de os gays gostarem de divas pop ou algo assim. 

Este ano o festival chamou-me um bocado a atenção por causa da concorrente Austríaca, Conchita Wurst ou, como já ouvi várias vezes, "aquela mulher com barba". E soube hoje que, pelos vistos, foi precisamente essa mulher barbuda que ganhou o concurso este ano. 

Já desde a primeira vez que ouvi falar da concorrente fiquei com um misto de apreensão e entusiasmo. Por um lado, é bom ver pessoas a quebrar visivelmente normas de género num evento tão grande como a Eurovisão. Por outro lado, fiquei com medo de ver como é que os meios de comunicação social iam lidar com esta pessoa e, pior ainda numa vertente mais pessoal, fiquei com medo de voltar a ver amigos e conhecidos a dizer tretas transfóbicas, piadas sobre "travecas" e coisas do género (uma espécie de sequela das tretas que vi a propósito do concorrente transexual da última edição da casa dos segredos). Ver pessoas com quem lido diariamente a dizer barbaridades transfóbicas afeta-me mais do que aquilo que eu gosto de admitir. 

De qualquer forma, não pude ficar indiferente a toda esta situação, ainda mais agora que, sendo a vencedora do concurso, a Conchita vai atrair imensa atenção dos media. E, como eu não confio nos media, fui eu próprio tentar perceber quem é esta pessoa, Conchita Wurst, a mulher barbuda que ganhou o Festival Eurovisão da Canção.

Uma pesquisa rápida no google informou-me que o nome desta pessoa é Thomas Neuwirth, sendo a Conchita apenas um "stage name", o nome da sua performance de drag. Para quem não está familiarizado com o termo, "drag" refere-se a uma arte de performance, normalmente com música e/ou dança, durante a qual uma pessoa se veste e apresenta como uma versão exagerada do sexo oposto. Drag pode ser considerado uma forma de travestismo associado à arte e ao espetáculo. 

Apesar desta informação estar disponível facilmente, continuo a reparar que imensa gente ainda não percebe bem se Conchita é uma pessoa "real", se é uma personagem, se aquela pessoa é um homem, uma mulher, um travesti ou uma pessoa transexual. Muitas pessoas parecem achar que esta pessoa é um travesti e uma mulher transexual (sim, ambos...), o que está apenas parcialmente correto.

Para quem ainda tem dúvidas e, como eu, não confia nos media nem na wikipedia, nada melhor do que ouvir a própria pessoa a explicar a sua identidade. Fui procurar vídeos de entrevistas para tentar esclarecer este assunto definitivamente, e foi isto que encontrei...

Nesta entrevista, parece dar a entender que a Conchita é uma "persona" que o cantor inventou por volta de 2007 quando estava a tentar entrar no show bussiness, mas fora do palco é apenas "the lazy Tom". Aqui, menciona ter "criado" a mulher com barba com o objetivo de mostrar ao mundo que podemos ser o que quisermos, independentemente da cor de pele, nacionalidade, etc. A certa altura menciona também ser um "drag artist". 

Encontrei também uma entrevista durante a qual parece mencionar que se identifica não como homem ou mulher, mas como algo algures no meio: "there are people out there who are in between, you know?" e faz uma analogia onde se coloca no meio entre o masculino e o feminino.

As dúvidas dissipam-se totalmente quando, perguntado diretamente se a Conchita é uma expressão artística ou uma identidade de género, a resposta é "I's more of an artistic expression, and sometimes people confuse it with being a transgender person and it's definitely not. I'm a drag artist, I'm not a transgender person", sendo a Conchita um outlet que Thomas encontrou para se exprimir artisticamente. 

Recapitulando: a Conchita Wurst é a personagem inventada por Thomas Neuwirth para usar durante as suas performances de drag. Thomas não se considera transgénero e usa apenas a sua persona feminina em palco. 

A razão pela qual andei a vasculhar pelo youtube por estas entrevistas e a compilar alguma informação sobre o assunto aqui é porque gostava que as pessoas entendessem que esta pessoa, Conchita Wurst, não é transexual e, portanto, não representa a população transexual. 

Por favor, não usem esta pessoa para perpetuar as ideias erradas sobre a população transexual ser toda andrógina, confusa e excêntrica. Não que eu ache que exista nada de mal nas pessoas (trans ou cis) que são androginas ou excêntricas (seria um enorme self-hating hipócrita se o fizesse, ah), mas em casos destes é extremamente fácil as pessoas ficarem com a ideia errada e caírem no erro de começar a associar este tipo de excentricidade à população transexual. 

Espero com isto não ser mal interpretado. Como disse no início, acho ótimo começar a haver mais representação de pessoas que não se conformam com as normas de género. Enquanto estava a ver as entrevistas, não conseguia deixar de sentir uma admiração enorme pela Conchita, pela forma como ela se apresentava, pelas suas atitudes e pela mensagem de tolerância que transmitia. Acho ótimo uma pessoa como ela estar a ter toda esta atenção mediática porque parece-me que é uma pessoa bastante humilde, inteligente e "down to earth", uma ótima embaixadora pela tolerência e pela diversidade. 

O meu problema não é com a Conchita, mas sim com os meios e comunicação social e com a forma como estes distorcem a personagem e a pessoa por trás dela o que, invariavelmente, gera confusão entre a população.

Mas, enfim, a forma como a população transexual e trangénera é apresentada pelos media é daqueles temas que me deixava a escrever durante o resto da noite. Vou ter de deixar esse tema para uma outra ocasião. Antes disso deixo apenas o apelo para que, quando virem assuntos trans a aparecer nos meios de comunicação social, aceitem a informação com um grãozinho de sal. Os media são péssimos a retratar estes assuntos e, provavelmente, acabam por espalhar mais desinformação do que informação.

P.S: se estão curiosos sobre o título deste post, googlem "Dana International"
on sexta-feira, 11 de abril de 2014
Hoje vamos fazer uma pausa das definições e vamos falar da operação. Aquela cirurgia mágica e maravilhosa que resolve todos os nossos problemas e nos torna membros do sexo oposto ao que nascemos. Ou, se calhar, não será bem assim...

Desde que assumi a minha identidade como gajo, as pessoas têm tido muito mais interesse sobre o que se passa entre as minhas pernas e, sobretudo, em saber quando é que eu vou fazer a operação. Acho sempre curioso a forma como as pessoas assumem de imediato que eu vou fazer a operação, visto que a maioria me pergunta "quando" em vez de "se". Também acho curioso a forma como raramente especificam sobre que operação estão a falar e simplesmente assumem que eu sei que estão a falar sobre algum tipo de cirurgia de (re?)construção genital. É giro, por vezes, fazer-me de sonso e perguntar de volta "operação? Que operação? Não faço ideia do que é que estás a falar" - as pessoas costumam ficar embaraçadas, não querem admitir que estão a perguntar sobre os meus genitais, "sabes, tipo, a operação". Eu gosto de pensar que, por esta altura, o embaraço vem do facto de as pessoas de aperceberem que não é muito apropriado perguntar-me sobre o estado dos meus genitais. 

Portanto, para evitar mais embaraços, vamos falar da operação. 

Antes de tudo, afinal de contas que operação é essa? 
"A operação", também conhecida por "operação de mudança de sexo" (ugh), "operação aos genitais", entre vários outros nomes, pode ser qualquer tipo de cirurgia que, de alguma forma, modifique os genitais de uma pessoa para que se assemelhem (em função e/ou esteticamente) aos genitais geralmente associados ao género a que a pessoa pertence.  As mais conhecidas costumam ser a vaginoplastia (construção de uma neovagina) ou a faloplastia (construção de um neofalo). No entanto, existem diversas variantes e outros procedimentos completamente diferentes que podem ser feitos. 

Que procedimentos existem?
Existe uma série de procedimentos diferentes, cada um deles tendo as suas vantagens e desvantagens. Falar sobre as diferentes cirurgias é algo que tem pano para mangas e que, portanto, não irei abordar neste momento. O que importa tirar daqui é que não existe nenhum único procedimento cirúrgico que todas as pessoas transexuais fazem, mas sim um conjunto de opções que podem ser usadas consoante a necessidade de cada pessoa. 

Mas esses procedimentos todos servem para mudar o sexo da pessoa, certo?
Errado. A identidade da pessoa é independente de qualquer operação que tenha feito ou não. Por exemplo, se eu não tiver feito ainda nenhuma intervenção cirúrgica aos meus genitais, não é por isso que deixo de ser um homem. Nem é correto dizer que uma pessoa mudou de sexo depois de ter feito "a operação". As cirurgias são apenas uma parte (importante e essencial para algumas pessoas) do processo de transição, não são o único e definitivo momento de "mudança de sexo". Muito antes de ter uma vagina, uma mulher transsexual já era uma mulher; ela não se "torna mulher" a partir do momento que sai do bloco operatório.

Mas, [qualquer coisa sobre biologia]!
Não. Qualquer que fosse o comentário sobre biologia, provavelmente iria cair na ideia de "um homem tem de ter um pénis e uma mulher tem de ter uma vagina", quando já devia ser óbvio neste momento que nem sempre isso acontece. Antes de qualquer indicador "biológico" sexual vem a identidade da pessoa (que pode também ter uma origem biológica). Algumas pessoas nascem com características sexuais primárias fora do comum; acontece, a biologia também se engana (com mais frequência do que gostaríamos de pensar).

Então, se essas cirurgias não mudam o sexo de uma pessoa nem o definem, porque é que as pessoas as fazem?
Por várias razões, sendo a principal para aliviar a disforia. Disforia é, em termos básicos, a sensação de ter algo errado connosco, algo que não está bem com o nosso corpo e que nos baixa a qualidade de vida de forma considerável. A disforia pode manifestar-se de várias formas (desconforto médio a extremo, angústia em relação a certas partes do corpo, sensação de dissociação com o nosso corpo, mal estar generalizado, depressão, etc) e é o principal fator impulsionador para uma pessoa iniciar a transição. Uma pessoa transexual pode fazer modificações no seu corpo (entre as quais, modificações aos genitais) para aliviar a disforia e poder sentir-se melhor dentro da sua própria pele. 

Essa disforia não podia ser aliviada de outras formas? Não era mais fácil uma pessoa simplesmente aprender a aceitar-se no seu corpo "original"?
Não, essa hipótese já foi explorada no passado e já está mais que comprovado que a única solução para aliviar a disforia é aproximar o nosso corpo ao corpo "padrão" do género a que pertencemos. As tentativas de "curar" a disforia por outros meios são, na melhor das hipóteses, tentativas frustradas que não levam a lado nenhum e, na pior das hipóteses, tortura para a pessoa transexual, podendo culminar no suicídio. 

Se isso é a única solução para a disforia, então todas as pessoas transexuais fazem essas cirurgias mais tarde ou mais cedo?
Mais uma vez, não. Nem todas as pessoas modificam os seus genitais, por diversas razões. Algumas pessoas não têm acesso aos cuidados médicos necessários, outras não estão satisfeitas com os resultados das técnicas atuais, outras simplesmente sentem que não precisam desses procedimentos para aliviar a sua disforia. Como tinha mencionado anteriormente, a disforia pode-se manifestar de várias formas diferentes e, para algumas pessoas, é-lhes suficiente fazer outros procedimentos (médicos ou não) para aliviar a disforia que sentem. Isto remete para o que eu tinha dito anteriormente sobre um homem não ser definido pelo pénis nem a mulher ser definida pela vagina. Há homens que sentem que são homens completos com os genitais com que nasceram (o mesmo aplica-se às mulheres). Isto não significa que são menos homens ou mulheres, ou que são "menos transexuais", significa apenas que, aquelas pessoas em particular, não precisam de certas partes do processo para se sentirem bem. A transição não é um "tudo ou nada". Idealmente, a transição será até ao ponto em que a pessoa se sente confortável consigo mesma. 

Então, se há pessoas que sentem que não precisam, não significa isso que é possível uma pessoa aprender a viver com o seu corpo?
Não, a relação que uma pessoa tem com o seu corpo é única para cada pessoa. Não é correto pegar numa pessoa transexual (que, por acaso, sente que não precisa de nenhuma intervenção cirúrgica) e generalizar a experiência dessa pessoa para toda a população transexual. Cada pessoa é única e experiencia o seu corpo à sua maneira. A forma como cada pessoa sente a disforia e a forma como lida com isso pode ser completamente diferente de um indivíduo para outro, não sendo a experiência de uma pessoa mais ou menos válida do que a experiência de outra pessoa.

Mas muitas pessoas fazem essas cirurgias, certo? Portanto é seguro assumir que esta pessoa transexual que conheço fez ou quer fazer essas cirurgias?
Não sei dizer quantas pessoas fazem ou não essas cirurgias. Pesquisei um pouco sobre o assunto mas não encontrei nenhuma fonte sólida que me desse uma estatística sobre isto. De qualquer forma, assumir coisas sobre outras pessoas é, geralmente, uma má ideia. Além disso, o que é que interessa se essa pessoa fez ou não cirurgias? E porque é que alguém tem de assumir o que quer que seja em relação aos genitais de outra pessoa? A não ser que tencionem meter-se nas calças da pessoa trasnsexual, o que ela tem dentro dessas calças não é do interesse de ninguém. A mim, pessoalmente, incomoda-me quando as pessoas me perguntam sobre os meus genitais não só porque é uma pergunta bastante invasiva (por vezes feita por pessoas que não têm confiança suficiente comigo para estar a fazer este tipo de perguntas) mas também porque incomoda-me ver que essas pessoas reduzem a legitimidade da minha identidade de género à "operação". Mesmo que não o façam explicitamente, acabam por reforçar a ideia de que "mudar de sexo" é sinónimo de "fazer a operação". Existem tantas outras facetas, tantos outros passos, tantas outras pequenas grandes conquistas durante o processo, que estar a ver tudo isso a ser colapsado numa única operação mete-me um bocado de comichão. 

Mas eu tenho curiosidade!
É normal uma pessoa ter curiosidade em relação a assuntos que desconhece. No entanto, essa curiosidade não justifica uma invasão da privacidade de uma pessoa transexual. Se fosse outra pessoa qualquer, seria legítimo perguntar-lhe sobre os seus genitais? Seria adequado perguntar a um homem que perdeu o seu pénis num acidente, ou a uma mulher com um defeito congénito qualquer na vulva (por exemplo) sobre como é que essas pessoas se sentem em relação aos seus genitais? Seria adequado perguntar-lhes sobre que cirurgias ou tratamentos médicos é que essas pessoas fizeram ou pretendem fazer? Não, isso seria uma invasão enorme da privacidade dessas pessoas. Estar a perguntar sobre "a operação" é uma transgressão do espaço pessoal de uma pessoa transexual. Além disso, muitas pessoas transexuais não gostam de falar sobre os seus genitais porque isso lhes pode desencadear emoções extremamente negativas e, como se não bastasse ter de lidar com a disforia, podem ainda sentir que a sua identidade está a ser posta em causa e que nunca irão ser vistos como um homem/mulher "a sério" até terem feito "a operação". 

Recapitulando: as cirurgias aos genitais não são o único momento no processo de transição. Essas cirurgias podem ser (e são, em muitos casos) essenciais e importantíssimas para uma pessoa, mas não são o que define ou legitima a identidade de género da pessoa. Há pessoas que não fazem essas cirurgias, e as que fazem fazem-nas para aliviar a sua disforia e aumentar a sua qualidade de vida (podendo nunca conseguir ser pessoas felizes sem estes procedimentos).

Ficaram aqui algumas questões sobre este assunto, espero eu, esclarecidas. Caso tenham mais perguntas, estejam à vontade para deixa-las nos comentários (já agora, uma pergunta bónus: "quando é que posso fazer perguntas sobre as operações?" Quando a pessoa vos dá autorização expressa para o fazerem!)