Eu sou quem sou (e quem era antes também)

on sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015
Há algumas semanas atrás fui levantar o meu cartão de cidadão novo. Depois de ter pago 200 euros e depois outros 15 na semana anterior, estava em pulgas para finalmente ver o resultado de tanto gasto de dinheiro em tão pouco tempo (na altura tudo o resto - todo o caminho percorrido até ali na transição, as consultas, coming outs, dificuldades variadas - estava meio bloqueado, eu estava mesmo muito ressabiado com o raio do dinheiro). Depois de confirmar a informação toda, lá dei o cartão antigo ao homem que me atendeu na conservatória do registo civil para que fizesse um furo no chip e, para minha surpresa, também um furo na fotografia. Pedi o cartão antigo de volta (está a dar-me jeito para atualizar a informação num monte de sítios diferentes) e saí de lá, finalmente, com alguma paz de espírito.

Mais tarde, numa conversa entre amigos, saquei do cartão novo e do antigo para me gabar de, finalmente, ter resolvido o problema. Ter os dois cartões à beira um do outro é algo que ainda me deixa com algum espanto - dois cartões, dois nomes, duas identidades, no entanto, é a mesma pessoa. Ao ver os dois cartões, uma amiga nota no furo na fotografia do cartão antigo (mesmo no meio da testa, um headshot certeiro) e pergunta-me: "até gostavas de ter sido tu a dar um tiro nesta gaja, não?"

Bem... não. Nem por isso. 

Muita gente parece assumir que todas as pessoas trans têm um ódio enorme ao corpo e à pessoa que "eram" antes da transição. Um ódio tão grande ao ponto de querer 'matar' o nosso 'eu' pré-transição, ou de nem sequer reconhecer essa pessoa como um 'eu' de todo (como um 'outro', como 'essa gaja'). 

Eu não me sinto bem dessa forma. Não guardo rancor em relação à rapariga que fui no passado. Aliás, ainda me é um bocado estranho dizer que "sempre fui um homem" porque, apesar de isso ser tecnicamente verdade, um facto é que vivi a maioria da minha vida até agora a pensar que era uma rapariga, a ser visto como uma rapariga, a viver tudo como uma rapariga (o que quer que "como uma rapariga" signifique). 

Não tenho qualquer tipo de arrependimentos em relação ao meu percurso no que toca à transição. Por vezes, no passado, consumia-me em raiva comigo próprio por um monte de pormenores e situações hipotéticas que colocava a mim mesmo. "e se me tivesse apercebido mais cedo?" "e se não tivesse passado tanto tempo em negação?" "e se tivesse tido coragem daquela vez para ter ido falar com aquela pessoa?" "e se tivesse tido esta conversa de outra forma?"  e se e se e se e se - e se me deixasse de lamentar? (a certa altura cheguei a um ponto em que nem eu próprio podia com a minha autocomiseração)

O meu passado pré-transição demorou exatamente aquilo que devia ter demorado e aconteceu exatamente como devia ter acontecido para que eu chegasse ao ponto que estou agora. Podia passar eternidades a tentar pensar em situações hipotéticas onde o meu passado fosse diferente, mas tal não me serve absolutamente de nada. Tenho vindo a descobrir que é bem mais útil reconhecer o meu passado, aceita-lo e viver com isso. No início foi um bocado complicado fazê-lo, porque em todo o lado somos incentivados a 'enterrar' o nosso passado. Mesmo dentro de espaços exclusivamente trans, existe esta ideia de que devemos deixar o passado de lado, nunca o referenciar, não tocar nele, ignora-lo por completo como se só começássemos a existir quando iniciamos a transição. Durante algum tempo eu interiorizei tudo isto, convenci-me que o meu 'eu' pré-transição era algo para fazer o luto e esquecer. A partir dali era um homem, e nunca tinha sido nada mais que um homem e ponto final. Não há grande espaço para discutir isto, e mesmo quando se discute parece ser algo extremamente taboo. Não quero com isto estar a criticar este tipo de mindset. Para muita gente trans, o passado é algo doloroso e que as pessoas tentam evitar por uma questão de saúde emocional; e há quem genuinamente não reconheça o seu "eu" pré-transição como um "eu" de todo. E está tudo bem com isso. Cada um vive a sua vida à sua maneira e este tipo de experiências são totalmente válidas. No entanto, nem toda a gente é assim. Eu não sou, e já tive conversas com outras pessoas que expressaram o mesmo (estas conversas foram maioritariamente privadas, já que essas pessoas (nas quais me incluo) tinham medo de aborrecer as outras pessoas nos espaços trans).

Durante algum tempo tentei aderir a este tipo de pensamento, mas entretanto cheguei à conclusão que não era para mim. O meu passado não me incomoda assim tanto - incomoda bem mais ter de o descartar e de criar um sofrimento artificial à volta dele só porque é o que "é suposto" para uma pessoa trans. 

Quando era criança brincava muito com os meus amigos do colégio (tanto meninas como meninos). Gostava de jogar às escondidas, ao quarto escuro, andar de bicicleta. Mais tarde veio o game boy e os Pokémons, as figuras de ação e pessoas a tentar impingir-me barbies. Nunca gostei de barbies, por muito estereotípico que isso seja. Por esta altura comecei a ter uma reputação de maria rapaz, e gostava disso. Entretanto meti-me no desporto. Ser melhor atleta que muitos rapazes era das coisas que mais gostava de me gabar. Isso e de ter ganho, durante anos seguidos, o corta-mato e as olimpíadas da ciência da minha escola. Os anos foram passando e eu continuava sempre a maria rapaz de sempre, por muito que me tentassem "corrigir". Dizer-me que os rapazes não gostavam de marias rapazes não só era mentira, como na altura passava-me completamente ao lado (nunca gostei de me dizer "lésbica", portanto assumia o rótulo de "bissexual"). Se bem que, a certa altura, tentei dar-lhes ouvidos e ter uma apresentação mais feminina. Nunca cheguei muito longe, sentia-me mal sempre que tentava ir além de uma camisa um bocado mais justa e uma trança mal amanhada. Passei toda a adolescência a ser visto como uma maria rapaz, depois os anos iniciais da faculdade como uma rapariga meia estranha e introvertida. Durante todo esse tempo era vista como uma rapariga e tratada como tal. Tive rapazes a atirarem-se a mim, taxistas a mandar piropos foleiros na rua, fui perseguido por um homem desde uma ruela estreita até à estação de metro, e depois outra vez passados dois dias e aprendi a não andar por ruelas sem estar acompanhado (curiosamente, há uns tempos atrás voltei a passar nessa mesma rua, depois de a andar a evitar desde essa altura; desta vez senti-me seguro, acho que foi a primeira vez que me apercebi de forma tão óbvia do que é ter privilégio masculino no meu dia-a-dia), vi a minha opinião descartada porque "uma rapariga não entende tanto de [desporto/videojogos/etc]", perguntaram-me se estava "naquela altura do mês" quando me exaltava num debate, etc etc etc. Isto é apenas uma pequena amostra, com ênfase em algumas partes que referenciam diretamente o meu passado "como rapariga". 

Tudo isto (e muito mais) faz parte de quem eu sou. Não deixou de existir a partir do momento em que assumi a minha identidade masculina. Não tenho qualquer intenção de apagar tudo isto nem de dar um metafórico tiro à pessoa que era, porque essa pessoa sou eu. 

1 comentários:

Anónimo disse...

Para ser sincero ando a tentar ganhar coragem para meter conversa contigo. Ler este texto e rever-me em cada frase tua deu-me uma vontade enorme de me expressar também. Ainda estou muito nas fases iniciais deste longo processo de tentar perceber o que tudo isto significa, e como lidar com a situação, mas sentir que não é só porque não odeio de morte o meu "eu" presente, só porque não quero me magoar fisicamente todos os dias por não me reconhecer no meu corpo, por não pensar em suicidio, que os meus sentimentos são menos válidos que os dos outros trans. Como disses-te eu não tenho qualquer preconceito com quem o sinta, e é um sentimento válido, mas eu também sinto que sou mais que isso, que tenho valor de alguma forma, mesmo que no corpo errado, corpo esse com o qual vivo à tantos anos, com o qual cresci e muitas vezes tive de me habituar aquilo que não me sentia bem para conseguir "viver", que por isso sinto que não o odeio.

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