Identidades e Legitimidades

on terça-feira, 21 de junho de 2016
Hoje tropecei num blog novo, Fora de Borda, cujo primeiro post toca num assunto que tenho vindo a tentar abordar aqui. Inicialmente este texto era uma resposta a esse post, mas entretanto expandiu-se e mutou-se de tal forma que decidi publica-lo aqui.

O texto foca-se na questão da legitimidade para discursar sobre determinados temas, no contexto do ativismo lgbt e feminista. Ficam aqui alguns pensamentos que me surgiram ao ler o texto.

Tenho-me tornado cada vez mais convicto de que o critério que confere legitimidade ao discurso de alguém não será apenas a identidade, mas principalmente a experiência. A lógica por trás do critério "identidade" parte do princípio que todas as pessoas dentro de uma determinada categoria identitária terão passado, relativamente a dinâmicas sociais e institucionais de opressão, por experiências semelhantes. Apesar de este critério não ser perfeito (compare-se, por exemplo, os recursos disponíveis a um homem gay a viver numa aldeia no interior do país, com um homem gay a viver num meio urbano), era suficientemente satisfatório para poder ser aplicado na maioria das situações. No entanto, dois "problemas" têm vindo a surgir: 

1) o foco crescente na interseccionalidade de identidades é uma coisa boa, mas complica a aplicação deste critério exclusivamente identitário no apuramento de "legitimidades" para "falar em nome de [x]". Por vezes torna-se complicado entender até que ponto faz sentido alguém falar em nome de [x], tendo em conta que essa pessoa é, em simultâneo, [x], [y] e [z] - até que ponto é que pessoas [x] que não sejam [y] e/ou [z] partilham experiências com a primeira pessoa (e vice-versa) e, consequentemente, poderão as pessoas [x] sentir-se mal representadas uma vez que não são [y] ou [z] (e, da mesma forma, poderá a primeira pessoa sentir-se mal representada pelo discurso de alguém que não seja [y] ou [z]). Será legítimo alguém trazer para a discussão assuntos relativos às identidades [y] e [z] numa discussão sobre [x]? Ou será legítimo sequer discutir [x] sem ter em consideração as pessoas que também serão [y] e/ou [z]? Tenho visto algumas trocas de ideias sobre este assunto e ainda não faço ideia sobre como começar a responder a nenhuma destas questões.

2) a fluidez e abertura de determinadas identidades permitem que mais pessoas se encontrem dentro da mesma categoria identitária (com todas as vantagens que isso pode trazer à pessoa) mas surge o risco de se diluir as experiências relativas a essa identidade. Estar aberto a diferentes vivências dentro de uma determinada categoria identitária é uma coisa boa, mas pode tornar-se algo negativo se essa categoria identitária for resumida a nada mais que um mínimo múltiplo comum entre pessoas que têm experiências, vivências e que estão sujeitas a dinâmicas de privilégio extremamente diferentes. Este é um ponto em relação ao qual que eu, como pessoa trans, cada vez mais me questiono. A definição atualmente mais utilizada de "trans" é "pessoa cujo género difere daquele que lhe foi atribuído à nascença", não tendo em conta coisas como, por exemplo, disforia, transição clínica ou apresentação social. Como tal, existem pessoas trans que estão sujeitas a opressão por sofrerem disforia, estarem a fazer uma transição clínica e/ou social, e existem pessoas trans que não passam por nenhuma destas experiências e, como tal, não estão sujeitas à opressão que lhes está associada. Terão outros problemas e estarão sujeitas a outras dinâmicas de opressão, mas isso é algo que eu não consigo avaliar ou comentar por não fazer parte desse grupo de pessoas. O que me trás ao que eu estava a dizer: apesar de sermos pessoas trans, podemos estar sujeitos a dinâmicas de opressão extremamente divergentes, o que levanta a questão: "mesmo sendo todos trans, quem é que tem legitimidade para falar sobre o quê?". Será legítimo, por exemplo e tendo em conta que o acesso aos cuidados de saúde é um dos grandes temas do ativismo trans, uma pessoa que não passou pelo processo clínico de transição falar sobre o mesmo? E será adequado, tendo em conta que outro grande tema se prende com questões puramente identitárias, uma pessoa trans que passou pelo processo clínico falar sobre a legitimidade da identidade das pessoas trans que não o fizeram? Se avaliarmos estas perguntas pelo critério da identidade, a resposta é "sim" a ambas; no entanto, pessoalmente, penso que tal não faz qualquer sentido. Creio que isto ilustra bem o problema de agruparmos pessoas (e, consequentemente, atribuirmos legitimidade) de acordo com um critério mínimo e pouco ou nada representativo das experiências que as pessoas têm em relação aos diferentes eixos de opressão/privilégio.

O que me trás de volta àquilo que eu estou a tentar defender: o critério prioritário para atribuir legitimidade ao discurso de uma pessoa sobre um determinado tema deve ser a vivência da pessoa, não apenas a sua identidade. 

No entanto, entendo que este critério também possa ter alguns problemas. Um dos problemas é algo que eu por vezes sinto no meio de discussões sobre feminismo e misoginia. Em diversas ocasiões presenciei e participei em discussões sobre a opressão que as mulheres sofrem, na primeira pessoa, e tive vontade de intervir (e, por vezes, fi-lo). Eu sou um homem, portanto à partida não teria nada de relevante a acrescentar a uma discussão dessas. No entanto, vivi a maior parte da minha vida sendo percecionado e tratado como uma mulher e, portanto, passei por muitas das experiências que as mulheres passam. Tenho então, ou não, legitimidade para intervir? Eu diria que sim, porque dou prioridade à vivência em detrimento da identidade, no entanto surgem-me outras questões que me fazem pensar várias vezes antes de dizer algo. Partindo então do princípio que é legítimo eu falar, será adequado? Será útil eu desviar a conversa para incluir a experiência de um homem, quando se está a discutir misoginia e sexismo? Será adequado eu fazer um apelo à inclusão de pessoas que não são mulheres, quando se está a discutir a opressão sofrida por mulheres? Será isto sequer um apelo a uma discussão mais inclusiva, ou será uma invisibilização do problema da misoginia? Será que só o devo fazer se apresentar um disclaimer prévio em que explico que a minha experiência se refere apenas ao passado, quando era percecionado como mulher, exigindo que me exponha como pessoa trans (coisa que não costuma ser um problema para mim, mas será para outras pessoas) e possivelmente tendo de fazer uma pausa na discussão para esclarecer às pessoas presentes qualquer dúvida sobre questões trans (coisa que nem sempre tenho paciência para fazer e que provavelmente irá descarrilar a discussão que estava a acontecer previamente)? Este é outro monte de perguntas às quais eu ainda não sei responder. Normalmente tento avaliar o espaço onde estou, as pessoas e o rumo da conversa antes de tomar uma decisão sobre falar ou não.

Esta questão é também levantada no Fora de Borda:
As dimensões das identidades não são fluídas? Então cada ‘voz’ pode ficar imediatamente sem validade perante o decorrer do tempo, pois todos os espaços e tempos das nossas vidas são parte integrante de quem somos, e quem eu sou agora que escrevo, poderá não ser exatamente quem vai colocar o ponto final neste texto.
Esta é uma questão que me faz pensar e que já abordei antes neste blog (de uma perspetiva pessoal, não reivindicativa). Somos nós uma soma integral de tudo o que fomos no passado, ou somos apenas quem somos agora? E de que forma é que isto influencia a nossa legitimidade para falar sobre identidades que tivemos no passado mas que já não temos presentemente?

Todo este post levanta perguntas às quais não sei responder. Duvido sequer que, para muitas delas, exista uma resposta absoluta. Mas cá ficam as questões, para quem quiser pensar nelas e trocar ideias.

1 comentários:

lillysotnas disse...

Moço, isso já são muitas perguntas lol mas gostei das ultimas..percebo k não keiras ferir susceptibilidades ao opinar sobre as tuas proprias experiencias de vida como mulher percecionada mas agora vamos bloquear a liberdade d pensamento so pk existem radicais...sou mulher e mesmo assim gosto de ouvir reflexoes, pensamentos e posicoes de mentes pensantes e vibrantes...voto na inclusao das mentes e nao da identidade partidaria.

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