Unpacking: Disforia de Género no DSM-V

on terça-feira, 19 de abril de 2016
Muito se fala sobre a questão da despatologização e despsiquiatrização (eu nem sei se esta palavra existe realmente, mas já a vi a ser atirada por aí) da transsexualidade. É um assunto que eu quero um dia elaborar neste blog, mas para já vamos tentar ver exatamente o que é que estas palavras significam na prática. 

Vou começar por fazer um unpacking do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), 5ª edição (a edição mais recente aquando da escrita deste post), publicada em maio de 2013.

Esta análise não é exaustiva; vai focar-se nos pontos que com mais frequência parecem dar origem a mal-entendidos e desinformação em relação ao que é descrito clinicamente como "Disforia de Género".

Vamos começar por ver onde é que a condição "Disforia de Género" encaixa:


A primeira coisa que salta à vista é o facto de a disforia de género estar separada da secção referente às disfunções sexuais ("Sexual Dysfunctions"). É também de notar que é a única categoria que não inclui "Dysfunction" ou "Disorder" no seu nome.

Olhando para os membros de cada grupo de trabalho encontramos o seguinte:


Poderá ter sido um descuido que levou ao esquecimento da atualização da denominação nesta secção, ou não. Espantou-me ver Kenneth Zucker como chair desta secção. O nome soava-me familiar e uma pesquisa rápida no google mostrou-me um número considerável de links que ligam este médico a acusações de promoção de "terapias reparativas" para pessoas, principalmente crianças, transsexuais. De notar é também a presença de Ray Blanchard, infame pelo cunho da palavra autoginecofilia e da sua respetiva "tipologia de transexualismo" (que, além de redutora e estigmatizante, ignora por completo a existência de homens transsexuais). É possível que a sua presença nesta secção se cinja ao capítulo referente às disfunções sexuais, mas não me é possível descartar por completo a possibilidade de também ter contribuído para o capítulo referente à disforia de género.

Um bocado mais abaixo podemos encontrar Zucker mais uma vez:

Não é claro qual dos grupos de trabalho terá tido um contributo maior na elaboração do capítulo referente à disforia de género. 

(só comentei os nomes que já conhecia previamente, se alguém reconhecer mais algum destes nomes e tiver algo que considere relevante referir, deixem-me um comentário ou um email!)

Ao ver a lista dos códigos deparei-me com o seguinte:


Não ia dar qualquer atenção a esta secção até reparar que "Transvestic Disorder" pode co-existir com autoginecofilia. Portanto, temos algo que não tem nada a ver com identidade de género (travestismo) misturado com uma condição que "descreve" (pessimamente) vários tipos de mulheres transexuais.

A observação seguinte não está diretamente relacionada com a questão da disforia, mas não consegui deixar de achar curioso o seguinte:


Coisas como discórdias com vizinhos, salário baixo ou ser vítima de um crime constam numa lista de patologias psiquiátricas. Isto ajuda um bocado a colocar em perspetiva o quão "patológicas" serão realmente consideradas as condições descritas no DSM.

Durante o capítulo introdutório, é definido aquilo que é considerado "doença mental":


Achei apropriado incluir também o parágrafo que segue a definição para dar ênfase ao facto de o DSM encorajar os profissionais de saúde a agir da forma que for mais benéfica para os utentes, mesmo que não seja formalizado um diagnóstico do que quer que seja. 

O capítulo referente à Disforia de Género começa com uma breve introdução aos conceitos mencionados ao longo do texto. Mesmo no final, pode-se ler:


Portanto, fica desde o início esclarecido o facto de a disforia se referir ao sofrimento ("distress") proveniente da incongruência entre o género da pessoa e o género que lhe foi atribuído, não à identidade da pessoa. Também é de notar que é reconhecido o facto de nem toda a gente cujo género difere daquele que lhe foi atribuído sofre de disforia (pelo que o que é descrito neste capítulo, então, não se aplicará a essas pessoas). 

O documento segue então para os critérios de diagnóstico, que estão divididos entre disforia em crianças e disforia em adolescentes e adultos. Em relação às crianças, os critérios resumem-se à rejeição de atividades estereotipicamente associadas ao género que foi atribuído à criança juntamente com um desejo forte de ser de um outro género (não necessariamente o género "oposto"). 



Nos adultos, os critérios parecem mais focados nas questões físicas e anatómicas. Em ambos os casos, os critérios de diagnóstico incluem questões físicas, sociais, convicções fortes de pertencer a outro género (diferente do que foi atribuído à nascença) que têm de estar presentes durante, pelo menos, 6 meses e têm de causar sofrimento clínico significativo e/ou dificuldades a nível social e/ou ocupacional. Os critérios prevêem a existência de pessoas intersexo (portadoras de "perturbações de desenvolvimento sexual", para seguir a definição que consta no documento) com disforia de género.

Em relação aos adultos, é referida a possibilidade de uma pessoa com disforia de género optar por não se submeter a qualquer intervenção clínica:


No entanto, também é referido o facto de a maioria das pessoas com disforia de género procurarem e precisarem de intervenção clínica (hormonal e cirúrgica) e que muitas estão em risco de suicídio enquanto não têm acesso às intervenções que precisam.

Em relação aos adultos, é reconhecido o facto de existirem pessoas cuja disforia só se manifesta após a puberdade:

Ou seja, não é necessário uma pessoa "saber desde pequena", ao contrário do que um dos maiores estereótipos sobre a transsexualidade dita. 

É também interessante ver que os autores admitem que diferentes contextos culturais podem interferir no diagnóstico, sendo que em alguns contextos poderá nem ser possível aplicar os critérios:



O documento também prevê a existência de pessoas que, apesar de terem comportamentos, atitudes ou gostos associados ao género oposto, não sobrem disforia:


Ou seja, as pessoas que não se conformam às expectativas sociais do seu género não recebem, apenas por isso, um diagnóstico.

Algo que vejo com alguma frequência é a ideia de que quem tem esquizofrenia não pode ser diagnosticado com disforia de género. No entanto, o DSM diz o contrário:




Rondas bónus! 

Já que tenho o DSM aberto, vamos olhar para outras secções que normalmente são trazidas ao barulho quando se fala sobre transsexualidade.

Bónus 1: Travestismo

Ao contrário do que já vi ser afirmado por algumas pessoas, o DSM não considera o travestismo como uma perturbação. O que consta no DSM é o que chamam de "transvestic disorder", que se encontra dentro da secção das parafilias. No entanto, é feita uma diferenciação entre parafilia:



e perturbações parafílicas:

Ou seja, só são diagnosticados como perturbações os casos em que a parafilia causa uma diminuição da qualidade de vida da pessoa ou causa danos a terceiros (sendo considerado algo normal em qualquer outro caso). Vamos então olhar mais de perto a perturbação de travestismo:


O ato de travestismo tem de causar uma diminuição da função (social, laboral, etc) de um indivíduo para ser considerada uma perturbação;

Outro ponto curioso: 

Portanto, uma mulher transsexual provavelmente não poderá ter fetiches, de acordo com estes critérios. Curiosamente, consideram que a presença de autoginecofilia um ponto a "favor" para um diagnóstico de disforia de género. Seria interessante mostrar isto ao monte de pessoas que dizem que a presença de autoginecofilia anula o diagnóstico de disforia de género (argumento que eu já vi várias vezes a ser feito por quem tenta pintar as mulheres transsexuais como homens tarados).

Outro pedaço de informação que achei interessante:


Consideram que o travestismo pode desenvolver-se e tornar-se disforia, como se o travestismo fosse a causa da disforia. Acho curioso como não colocam a hipótese de, nestes casos, o travestismo poder ser um sintoma, não uma causa, de disforia de género. 

E só mesmo porque eu gosto de ser chato e mandar vir com estes pormenores:


Claro, porque os gays estão todos totalmente serenos com a possibilidade dos seus parceiros gostarem de usar roupa de mulher. Porque os gays são todos assim mente aberta, nada misóginos nem existe uma cultura de masculinidade tão tóxica como no resto da sociedade heteronormativa. Claro.

Bónus 2: Transtorno dismórfico corporal

Isto é algo que vejo a ser comparado e igualado à disforia com alguma frequência. Vamos olhar para os critérios de diagnóstico:


A razão pela qual pode parecer que as pessoas transsexuais encaixam dentro destes critérios é porque, para quem não é transsexual, as questões relacionadas com a imagem corporal (ou seja, com a disforia) não passam de obcessões com "partes do corpo saudáveis". No entanto, esta linha de pensamento só se mantém de pé enquanto não consideramos as pessoas transsexuais como pertencentes ao género a que declaram pertencer. Ou seja, por exemplo, a presença de mamas numa mulher não será algo interpretado como um defeito físico significativo, mas num homem sim. No entanto, enquanto as pessoas não virem um homem transsexual como homem, vão sempre pensar que se trata de uma mulher com problemas de imagem corporal. 

Ao longo do texto referente a esta secção, não é feito qualquer paralelismo ou sequer menção à disforia de género. 

Bónus 3: Homossexualidade

A homossexualidade constava no DSM até 1974, ano em que foi retirada do mesmo na re-edição do manual desse mesmo ano. Fui espreitar na última edição em que a homossexualidade aparecia listada: a segunda edição, editada em 1968. 

Nesse documento, a homossexualidade aparece categorizada como um "Desvio sexual", o que por sua vez se encontra dentro das "perturbações de personalidade e outras doenças mentais não-psicóticas" (tradução livre de "Personality disorders and certain other non-psychotic mental disorders"):



O documento não elabora mais do que isto, mas chega para ver que o que constava no manual sobre a homossexualidade não se compara ao que hoje em dia se pode ler em relação à disforia de género. Para ser diagnosticada com disforia de género, uma pessoa tem de ter a iniciativa de declarar o seu género e tem de existir sofrimento clinicamente relevante, que é o que vai ser diagnosticado e tratado. Ou seja, é um diagnóstico centrado no indivíduo que sofre de disforia e nas suas necessidades. 

Em contraste, o diagnóstico de homossexualidade centra-se em julgamentos morais daquilo que é considerado "atos sexuais (...) sob circunstâncias bizarras" e "comportamento sexual normal". 

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